Naquele tempo falar alemão era crime

03/08/2019
Por Alan Caldas - Editor

Por Alan Caldas - Editor

Quem conhece Dois Irmãos hoje e torce, como nós, para que a língua alemã não se perca, vai ficar estarrecido ao saber que durante um tempo lá no passado falar alemão aqui era “crime”. Não só aqui. Na colônia toda. 
Nossa cidade vem desde 1829, com alemães que saíram do Hunsrück, uma região ali por perto de Frankfurt, e vieram erguer nossa adorável cidade. 
Saídos da Alemanha, por óbvio falavam alemão, é claro. E com a língua alemã colonizaram a terra, plantando, colhendo, comendo e vendendo. 
Alemão era a língua oficial da cidade porque aqui só moravam alemães. Hoje, emancipamos Morro e Herval. Mas, no passado, a área geográfica que ia do Travessão até lá na Nova Renânia, divisa de Gramado, 100% dos moradores eram germânicos e falavam a língua que haviam aprendido dos pais lá na Alemanha. A mesma Alemanha que, supomos, deixaram com imensa tristeza, pois sabiam que para lá nunca mais voltariam. 
A língua alemã acompanhou seus corpos. E mentes. Era com ela que realizavam todas as práticas de vida. Com a língua alemã conversavam. Com ela liam. Com ela se alimentavam. Com ela amavam. Com ela rezavam. Com ela cantavam. Com ela contavam piada. Com ela brigavam. 
Tudo, tudo, tudo era feito em língua alemã. Era muttersprache, a língua-mãe dos colonizadores que fundaram Dois Irmãos.


Viver não é simples. 
E se já era difícil deixar família, amigos e pátria para jamais retornar, que é o que aconteceu com aqueles alemães que vieram para cá, imagine a dificuldade que seria se proibissem eles de falar a única língua que sabiam. Seria o caos. O terror. O desespero.
E foi isso que aconteceu. E aconteceu não porque os colonos daqui tivessem feito algo errado. Nããão!!! Aconteceu de proibirem falar alemão porque a política, que às vezes faz a vida melhorar e noutras piorar, acabou atropelando o modo de viver dos alemães que viviam aqui. 
A geopolítica mundial da década de 1940 criaria um drama político para os descendentes de alemães que viviam aqui.


O que aconteceu? 
Nos anos de 1938 em diante, Hitler, o chanceler da Alemanha, que vivia na Europa e nada tinha a ver com Dois Irmãos, resolveu lá na Alemanha dele que “precisava de ar para respirar”. 
Hitler queria se “expandir”. 
A guerra sempre foi divertimento de estadistas. E comandando as tropas alemãs, Hitler idealizou o “Deutschland Über alles”, a Alemanha acima de tudo e de todos. E porque a Alemanha vivia numa economia catastrófica naquele período, os alemães acreditaram nele. E tendo apoio popular, Hitler alçou voo em busca desse sonho de “ar para respirar”.  
O Führer começou invadindo países ali por perto dele. Foi e venceu. E vendo que dava certo, decidiu que precisava “mais espaço para respirar”. E foi invadindo e subjugando outros países naquela região europeia, pegando para ele o que esses países tinham de melhor. 


A coisa ia bem. 
Mas, “ninguém vive impunemente a delícia dos extremos”, disse um tal de William Shakespeare. E os vizinhos do seu Hitler começaram a trocar orelha, como diz o gaúcho, e não gostaram muito daquela expansão dele. E começaram a reagir. A se unir. A tentar deter os Panzer e a Luftwaffe do seu Adolf. Porém, o Führer era inteligente. O exército alemão era exemplarmente forte, bem treinado, dedicado e cheio de tecnologia. 
O fato é que, por mais que a vizinhança se unisse, as tropas de Hitler eram tão superiormente superiores que os países ainda continuavam levando uma surra dos guerreiros alemães. 
E outra coisa: Hitler para bobo não servia. Seus anos de prisão e meditação onde ele escreveu o Mein Kampf o tornaram um estrategista bélico respeitado. Assim sendo, vendo que os vizinhos se uniram para combatê-lo, ele tratou de reunir amigos como Mussolini, na Itália, e o Imperador Hirohito, no Japão, aumentando a área de influência guerreira alemã.
 
A pancadaria seguia na Europa conflagrada,
a suástica ficando cada vez mais forte. E, enquanto isso, aqui no Cone Sul do mundo, os colonos alemães de Dois Irmãos, que na época pertencia a São Leopoldo, continuavam sua vidinha tranquila, plantando, colhendo, tirando leite, educando filhos e... falando alemão, é claro, a única língua que eles sabiam falar bem. Algo estava por acontecer. E seria grave.
Hitler seguia redesenhando a bala o mapa da Europa. E quando a expansão do Führer cresceu para além do suportável, numa Europa que sempre gostou de guerra, os europeus solicitaram ajuda aos Estados Unidos, cujo povo tinha, também, origem europeia. E os Estados Unidos aceitaram. 


Nesse meio tempo, lá no leste da Europa, 
um senhor de bigode e brabo como o demônio, chamado Joseph Stalin, também não gostou do ver Hitler avançando tropas nas vizinhanças da Rússia. Hitler estava indo além das medidas, disse Stalin, e reunindo seu comitê central soviético decidiu entrar na encrenca e guerrear contra o Führer. Ao final desse esforço de Stalin, o povo russo teria 20 milhões dos seus irmãos mortos nessa guerra. E nas mais sangrentas batalhas de todos os tempos, como a de Stalingrado.


Mais adiante, ainda, lá na Ásia, 
a China viu o Japão se arreganhando para Hitler e percebeu que a intenção deles era colocar um Samurai no Trono do Dragão, se Hitler vencesse a guerra. Então a China se armou e entrou na guerra para guerrear contra Hitler, Japão e Itália.
Formavam-se, assim, as duas coalizões que criaram a partir de 1942 o que se chamou de Segunda Guerra Mundial. A partir de 1942? Sim, porque até ali a guerra era europeia.
E é aqui, bem aqui, justo aqui que os descendentes de imigrantes alemães de Dois Irmãos começaram a pagar pecados que não tinham cometido. 
É incrível que as coisas sejam assim. Mas é assim que foi. Quando a guerra virou mundial, com Estados Unidos, China e Rússia se aliando para defender os europeus da agressão de Hitler, os imigrantes alemães espalhados aqui pelo Vale Germânico (e por Dois Irmãos) começaram a ser vistos com monstruoso preconceito ideológico. 


Isso ocorreu porque, sendo uma 
guerra mundial, o Brasil foi arrastado para um lado desse conflito. E não era o lado alemão. Era o outro lado. E, vai daí que quem falava só alemão, como os colonos e moradores de Dois Irmãos, começaram a ter problemas por aqui. 
O mesmo ocorria entre italianos e japoneses, onde haviam colônias. Mas nós, aqui na região, sofremos com a proibição da fala em língua alemã. Tudo foi atingido por essa onda anti-deutsch. Jornais que tinham edições bilíngues, tinham censor nas redações, para impedir que isso ocorresse. Associações culturais e recreativas tiveram de encerrar todas as atividades associadas a culturas alemãs. Ou era na língua oficial, o português, ou nada feito. Foi intensificada a repressão às nacionalidades ligadas às Potências do Eixo, ou seja, aos alemães, italianos e japoneses. Livros, jornais e revista em alemão eram apreendidos pela polícia. Mas o pior de tudo era não poder falar alemão, porque alemão era só o que a imensa maioria da nossa cidade sabia falar. As crianças chegavam na escola falando só alemão, e ali é que, em 2 ou 3 ou mais anos aprenderiam “bem” a falar português.


O governo brasileiro, 
atendendo a geopolítica internacional, proibiu as pessoas de falar alemão “em público”. Isso ocorreu por que, sendo Hitler e a Alemanha “inimigos”, todos que falavam alemão por aqui começaram a ser vistos com esse preconceito ideológico. Ouvindo o que mandava a coalização contra Hitler, seu Getúlio Vargas, nosso presidente, decretou que ficava proibido falar alemão em público. 
Ou seja, nas escolas e nas igrejas, que é onde era a vida social dos dois-irmonenses, não se falaria mais alemão. Só português. Nas sociedades também.


O problema é que praticamente 
100% dos moradores daqui só falava alemão. E a ordem não era um blá, blá, blázinho qualquer, dizendo “por favor, não fale alemão”. 
Nããão. Nada disso. Era dureza. 
O Exército deveria fiscalizar as “zonas de colonização estrangeira”. Delegado, brigadianos, prefeitos e subprefeitos eram obrigados a proibir a língua alemã. Historiadores do nosso passado, como Justino Vier, lembram em suas memórias que havia blitz de quando em quando. Fiscais chegavam sem sobreaviso para ver ser “pegavam” algum professor ou padre falando alemão em público. Tinha de falar português. Ou o pau comia.


Imagine a cena: 
Pense nas pessoas na missa e o padre Valentin Weschenfelder rezando em português e ninguém entendendo patavinas do que ele dizia. 
Pense nos professores ensinando em português e os alunos não compreendendo nadica de nada. 
Imagine alguém indo ao hospital e as Schwester não podendo perguntar em alemão o que a pessoa tinha.


Foi um período louco. E triste. 
A insanidade da guerra endoideceu ideologicamente os governantes. E todo aquele povo de cabelo loiro, olho claro e pela amarelada deixava de ser visto como os colonos queridos e pacíficos que eram, e a partir dali se tornaram (no imaginário louco dos governos) perigosíssimos inimigos representantes dos nazistas europeus.
Pense no medo. Imagine a raiva. Sinta a humilhação. Pense no desgosto de por algo que não se fez, ter-se, de uma hora para outra, de ser-se totalmente outro ser humano, agora com língua nova e costumes totalmente diferentes.
Isso aconteceu. Conta nossa história. E só depois que a guerra acabou, deixando um rastro de sangue, dor e mais de 50 milhões de mortos, é que, aos poucos, bem aos poucos, a língua alemã foi retornando. Voltou. Mas nunca mais fomos os mesmos. Sobrou em cada descendente alemão daquela época uma coisa desconfiada, um medo de falar e um medo de ensinar alemão aos filhos, um medo de ser nazista só porque se falava a língua dos queridos antepassados.

* Na foto acima, detalhe da placa que ficava nas repartições policiais do Estado


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