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E aqueles que vivem como se não houvesse amanhã?
Eles estão certos, apesar do comportamento por vezes imprudente.
Errado está quem vive como se houvesse amanhã. Devíamos estar calvos de saber que existe somente o que foi e o que está sendo; o que será é uma simples projeção – ou abstração, se preferir – de algo que quando se concretiza (ou não) já faz parte do hoje e amanhã, do ontem.
Levamos um bom tempo para compreender que o tempo presente é o único tempo viável. Desperdiçamos anos nos preparando, esperando o melhor momento para finalmente sermos quem gostaríamos de ser, mas aí não conseguimos mais desapegar de quem nos tornamos. Preferimos alimentar expectativas ao invés de investir em possibilidades reais. (Viver como se houvesse amanhã é um truque manjado.)
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Empolgação é algo importante e necessário, mas na medida certa; caso contrário, transforma-se em embaraço. O calor do momento costuma nos atirar em brasas de pés descalços, nos faz prometer o que dificilmente poderemos cumprir e muitas vezes chamusca o que nos resta de dignidade. A maioria esquece que a natureza humana é estável apenas em sua instabilidade. (Arroubos são tendência e, principalmente, tendenciosos.)
Quem dera eu ter algum arroubo de criatividade para escapar desse marasmo raso em que me encontro. Tem dias em que apenas me debato na areia fofa e pegajosa da preguiça...
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Falar pouco, cada vez menos. Evitar comentários e opiniões contundentes. Deixar de se importar com o que não é importante. Ouvir o que tem a dizer quem importa para você e se importa com você. Dispensar a estupidez gratuita, mesmo que a provocação parta de um amigo. Ignorar, sem espalhafato, quem faz da sua parvoíce um escudo hermético, à prova de diversidades. (Tenha, no máximo, dó.)
Eis algumas recomendações sempre necessárias e bem-vindas, ainda mais neste 2022 que já cumpre seu segundo turno. (Observe mais, absorva menos.)
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As contradições movimentam o mundo. Ao mesmo tempo em que assusta, o aparente retrocesso cultural e civilizatório enseja o surgimento de novas vozes, dá vida ao pensamento diverso – ainda que o perverso siga à espreita.
Forças opostas mantêm engrenagens em funcionamento, ainda que com danos colaterais. Tudo porque as advertências da teoria não nos são suficientes: preferimos errar na prática. (As coisas como são estão postas, nos resta saber e querer ver.)
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Por maior que seja o cuidado despendido, em algum momento haveremos de magoar alguém, assim como também seremos magoados em outras oportunidades. Muitas vezes, esta mágoa será pessoal e intransferível, não encontrará eco nem reverberará no lado oposto, simplesmente por não ter motivos de existir ou por não ser compreendida como tal.
Lembre-se: quase todo tipo de incômodo costuma ser solitário. Portanto, que nossas mágoas sejam passageiras só de ida.
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INSTANTE NA ESTANTE
A persona antidrogas de Whitey Bulger foi uma das histórias mais persistentes e duradouras sobre o chefão criminoso. Era uma condição que Bulger, aliado a John Connolly, demarcara por meio de uma prestidigitação verbal. Para o gângster que dizia ter princípios, o dinheiro da droga era distinto das drogas em si. Ele podia achacar os traficantes por um “aluguel”, emprestar-lhes dinheiro para começar no negócio e exigir que comprassem de fornecedores com quem ele e Flemmi tinham sociedade. Bulger tornara o mundo um lugar seguro para os traficantes em troca de uma fatia do bolo, mas, pessoalmente, não chegava perto dos papelotes de cocaína ou dos saquinhos de maconha. Essa distinção se tornou a base da conversa fiada em torno de Bulger: ele não mexia com drogas.
Era uma espécie de cambalhota semântica tortuosa, mas havia um precedente: a postura de Bulger em relação às bebidas alcoólicas. Whitey bebia apenas ocasionalmente, e, quando o fazia, só tomava uma ou duas taças de vinho. Ele odiava ver os outros bebendo. Mesmo no Dia de São Patrício, queixava-se das pessoas bebendo em plena luz do dia. Certa vez, declarou que “não confiava em ninguém que bebia”. Afirmava que pessoas que bebiam “eram fracas” e podiam dedurá-lo.
Aliança do crime – Dick Lehr e Gerard O’Neill