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Não lembro de já ter visto, mas achei curioso. O boletim meteorológico do meu celular indicava para uma sexta-feira qualquer um dia lúgubre, com temperaturas entre 8 e 17 graus. Para o dia seguinte, sábado, a previsão era de tempestades. Ora, por óbvio um dia lúgubre só pode ser prenúncio de tormentas claustrofóbicas e insidiosas.
A bem da verdade, todos carecem de um pouco de poesia, até a previsão do tempo.
Muito além de uma definição climatológica, lúgubre remete a um estado de espírito perene quando vislumbrados os brados que ecoam no céu da insensatez. Vivemos tempos de invernos (e infernos) constantes e cortantes, em que o calor do fogo provocado pelo outro é capaz de fazer de nós incendiários sem causa. Viramos seres frios, de sangue inerte nas veias, buscando aquecer – sem aquiescer! – a própria ignorância com o sangue alheio.
Lúgubre é mais uma metáfora do que uma condição do tempo. A única previsão confiável talvez esteja nos Versos Íntimos do poeta Augusto dos Anjos:
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
***
Em noite de tormenta, o vento sopra seu ar indignado, zunindo por entre frestas de janelas banguelas em tom de desagravo. O tempo, ainda que breve, parece grave. Ouvem-se lamentos em forma de redemoinhos, suspiros diáfanos ininteligíveis e qualquer coisa parecida com um miado espremido – não sei se de um gato agoniado ou do próprio vento, triste e capado. Serei eu o gato ou o vento? Não importa! Entre, apague a luz e feche a porta!
***
Inquietações, queixumes e azedumes nos consomem lentamente, são como traças traçando um caminho embaralhado pelos tecidos de nossas entranhas. Não há dor aparente ou defeito que a vista alcance, apenas o labor metódico da continuidade sem fim, ainda que o fim seja somente um pretexto da pobre rima do meu texto. O corpo padece quando a alma, vencida e em feridas, desiste. (É a tal da metafísica que vive a nos subjugar.)
***
Debilmente, forço um sorriso. Não vejo mais graça nem de graça. Até meu choro desidratou. Resta-me o enfado. Se ainda fosse um fado, talvez houvesse misericórdia. Mas, ao que parece, a gratuidade da ignorância reinante e alienada é um estorvo com o qual haveremos de nos habituar pelo bem do próprio estômago. Há males que vêm para o bem? Só se for para o bem de outro! Ando ressabiado até do espelho, que nada diz, apenas reflete.
***
– Ruminações poéticas? Tem certeza?
– Era pra ser ‘patéticas’... Maldito corretor!
*
INSTANTE NA ESTANTE
Havia uma coisa que eu deveria fazer antes de ir embora, uma coisa tão desagradável que talvez fosse melhor eu ter esquecido. Mas queria deixar tudo em ordem e não confiar apenas que o mar condescendente e indiferente do esquecimento fosse varrer para longe o que restava de mim. Fui ver Jordan Baker e tivemos uma longa conversa sobre o que nos tinha acontecido enquanto estávamos juntos e sobre o que eu havia testemunhado sozinho depois disso. Enquanto eu falava, ela permanecia escutando perfeitamente imóvel, sentada em uma grande poltrona.
Estava vestida como se fosse jogar golfe, e recordo de haver pensado que ela parecia uma bela ilustração, seu queixo erguido com um tanto de atrevimento, seus cabelos da cor das folhas de outono, seu rosto bronzeado, na mesma tonalidade da luva castanha com os dedos à mostra da mão que repousava sobre seu joelho. Quando terminei minha história, ela me disse, sem maiores comentários, que estava noiva de outro homem. Duvidei disso, embora soubesse que existiam vários que teriam casado com ela com um simples estalo de dedos, mas fingi estar surpreso.
O grande Gatsby – F. Scott Fitzgerald (1896-1940)