Por Alan Caldas – Editor
Morrer é sobrenatural. Estar vivo é que é natural. Mas se diz que morrer “é natural”. Mas não é de filosofadas, como dizia meu avô, que vou escrever. Vou relatar a morte de ontem. Não a de ontem, ontem, e sim a de beeeeem ontem. A morte tal qual ela ocorria no passado.
A morte nos revela. Os ritos e crenças sobre o que morrer significa esclarecem quem somos. Os relatos do que morrer significava em Dois Irmãos, desde que os primeiros imigrantes chegaram aqui, estiveram sempre ligados ao cristianismo. A morte, portanto, como uma passagem para o lugar onde aguardaremos que Cristo volte e nos julgue a todos, separando o Joio do Trigo. E dali uns irão ao céu e outros ao inferno.
Longe, porém, do que acreditamos que acontecerá no além, existe a vida prática. O “o que fazer” quando alguém morria em Dois Irmãos, lá no início do século passado. Sendo Dois Irmãos uma área rural, não existiam os recursos de hoje, como funerária, capela mortuária e essas modernidades. A primeira funerária de nossa cidade, por exemplo, foi aparecer só em 1966, com o seu Aloisio e a dona Petrônia Backes.
Antes disso era o quê? Era a família. Os amigos. A vizinhança. A parentada. Todos se uniam na morte de alguém para auxiliar nos trabalhos. E morto dá trabalho! Tem de lavar o morto, por exemplo. Há que vestir o defunto. E aqui vem um detalhe que nos recorda do passado de Dois irmãos. Toda pessoa tinha uma roupa “de morrer”. Preta para adultos. Branca para crianças. E era essa a roupa com a qual seguiria a jornada.
Um fato interessante nas mortes do passado de Dois Irmãos era quem “atestava” a morte. Não haviam médicos por aqui, no início do século passado. Eram parentes e vizinhos que ao ver a pessoa inerte, sem movimento e esfriando, iam até ela e “testavam” a respiração, o coração, algum movimento que existisse. Se não houvesse batimentos ou respiração, os chamados sinais vitais, então vizinhos e parentes concluiriam pelo óbito, atestando que a pessoa realmente havia morrido.
Nossa comunidade é o que é porque fazemos as coisas de forma prática e objetiva. Morto que estava, logo se pensava na parte prática da morte. A roupa, como disse antes. E os proclamas, os avisos. Numa época sem jornal, sem rádio e sem telefone, como avisar a todos do passamento de uma pessoa?
Imediatamente saía alguém a pé, avisando vizinhos próximos, batendo de casa em casa. Ou saía a galope de cavalo, para chamar os mais distantes.
Enquanto isso, na casa do morto, havia que providenciar um caixão. As pessoas aqui em Dois Irmãos sempre foram enterradas em caixão, diferente da Europa, de onde vieram nossos fundadores, onde durante muito tempo o rito de “enterro” era bem diferente.
Mas e caixão? Onde encontrar caixão de defunto? Não havia. Tinha de ser feito um. E aí vinha outro problema: como saber a medida do caixão?
A técnica, segundo relatos que temos, era pegar um barbante ou uma corda e “medir” o morto. Uns maiores. Uns menores. Alguns mais gordos. Outros magros. Ia se medindo o de cujus. E com essas medidas, fazia-se o caixão. Mas quem fazia?
No início do século, os próprios vizinhos faziam. Lá pelo meio do século passado, já Dois Irmãos tendo área urbana, havia empresa para isso. Inicialmente a Construtora São Miguel, que hoje é a Idesa, e que pertencia ao seu Willibaldo Stoffel, é que fazia os caixões. Não havia pronta-entrega, por óbvio. Era tudo sob medida. E com as medidas tiradas do morto é que se elaborava o caixão. Caixão de madeira de pinho, normalmente, forrada com tecido por dentro.
Enquanto o caixão não vinha, o ritual seguia. Se tirava uma porta e colocava ela sobre cadeiras, deitando-se o morto em cima, já limpo e vestido. A roupa da morte era típica: homens vestindo fatiota e mulheres, vestidos, ambos de cor preta. Se o morto fosse criança, seria vestido com roupa branca, simbolizando a pureza infantil que partia.
Com a morte já declarada, com os familiares e vizinhos avisados, com o homem do caixão já com as medidas e com o morto já banhado, vestido e colocado em cima da porta que ficava sobre as cadeiras, aguardando a chegada do caixão sob medida, havia outras necessidades práticas a resolver.
Uma delas era a cova. A cova era a 7 palmos. Sete palmos é aproximadamente 1m70. E a cova era algo importantíssimo entre os alemães. Ela seria aberta por alguém que a família tivesse grande bem-querer e respeito. Abrir a cova era, entre os imigrantes alemães, uma grande honra para o escolhido.
Como o velório era em casa, e muitos parentes, amigos e vizinhos se fariam presentes, era necessário estar preparado com alimento. A comida precisava estar à altura (e quantidade) dos que viessem trazer condolências à família. E, como manda nossa tradição culinária, cuca, linguiça e café não poderiam faltar, além de variados tipos de carne, batata e tudo mais que se comia na época.
Se a família fosse pega de surpresa pela morte, num caso, por exemplo, de suicídio, que é coisa inesperada e que não era raro entre nós, os vizinhos ajudavam com a comida. E os parentes também ajudavam. Ninguém deixava ninguém mal, na hora da morte. A morte nos igualava a todos, e a solidariedade era a regra naquele momento trágico.
Comida era importante porque o velório durava 24 horas, normalmente, podendo até ser um pouquinho estendido, caso algum parente mais distante que estava vindo demorasse a chegar. E havia na casa todas as refeições, como café, almoço, janta e alguma comida durante a madrugada, porque diferente de hoje ninguém deixava o morto sozinho na sala e ia dormir. Todos ficavam ao redor do caixão.
No dia do enterro, o caixão era colocado numa carroça e levado até uma das três igrejas, Católica, Luterana ou Evangélica. Havia sempre missa ou culto de corpo-presente, seguindo, depois, o corpo para o cemitério.
Luteranos e evangélicos sempre tiveram seu cemitério onde ele é ainda hoje, ao lado da “igreja do relógio”, o templo da IECLB. Os católicos não. Os católicos tiveram seu primeiro cemitério ao lado da (hoje) Antiga Igreja Matriz, e era ali que enterravam seus mortos. Esse cemitério católico não existe mais, ele foi totalmente transferido, anos mais tarde, para onde está hoje, ali na avenida São Miguel com João Klauck. Todos os caixões e lápides foram transferidos para lá.
Da igreja até o cemitério, seguia-se um cortejo a pé, como ainda hoje temos, normalmente os familiares na mesma carroça em que ia o caixão do morto. Rezava-se para o morto na cova. Cantava-se para o morto. E havia as despedidas dos familiares e amigos.
Feito isso, seguia-se um ritual de luto que duraria um ano inteiro. Nesses 12 meses de luto, homens e mulheres vestiriam preto e não iriam a festas nem a bailes, apenas às missas e cultos. Os homens usariam durante esse ano uma fitinha preta na lapela, para demonstrar que estavam “de sentimento”. As mulheres, vestindo roupas negras, já demonstravam seu luto.
Uma tradição que se perdeu no tempo foi a de fazer uma foto do morto. A foto não foi uma criação da nossa comunidade de Dois irmãos, é claro. Já se fazia isso na Europa. E a tradição da foto chegou aqui tanto quanto chegou em algumas comunidades italianas que colonizaram outras regiões do Rio Grande do Sul. A fotografia do morto no caixão pode parecer, hoje, meio macabra. Mas não era. Ela significava uma forma de eternizar o morto. Nada é mais eterno que a foto, e ter uma foto do morto, junto com familiares, inclusive, feita no dia do seu velório, é eternizar sua presença entre nós. Essa ideia da foto veio de eras muito antigas, quando se faziam as máscaras de mortalha dos que eram “grandes” na história.
E era assim que enterrávamos nossos mortos no século passado.