Reportagem ouviu depoimentos de pessoas que têm parentes presos no Central
Muito antes do sol nascer, centenas de familiares já aguardam o horário de visita no Presídio Central, em Porto Alegre. Os encontros ocorrem às terças e quartas-feiras, sábados e domingos. É nestes dias que muitas famílias levam itens básicos de sobrevivência para os encarcerados, como alimentos e produtos de higiene, além de roupas e dinheiro. Essa é a rotina de vários parentes dos mais de 40 mil detentos do Rio Grande do Sul.
A fila de espera nos dias de visita no Central é imensa. Idosos, gestantes, pessoas com problemas de saúde e que moram em cidades distantes, têm preferência. Os demais, aguardam logo adiante para rever filhos, esposos e netos. Já as crianças só podem entrar em datas preestabelecidas pelo presídio.
Tem gente que chega de madrugada, geralmente porque mora longe; e tem gente que mora do lado. Independente da distância, a vida dos mais de 4 mil presos e das suas famílias está separada por grades e portões de ferro. O sentimento de impotência toma conta de quem está do lado de fora. Alguns homens estão presos há mais de 10 anos; outros cruzaram os portões do Central há alguns meses.
Desesperadas, famílias lutam pela liberdade dos parentes presos, ou para que pelo menos sejam julgados e possam cumprir suas penas o mais rápido possível e deixar o Central. Essa angústia está presente no discurso de muitas mães e esposas; é o que podemos notar nos depoimentos registrados na manhã do dia 10 de novembro, quando a reportagem foi até a “Rua do Presídio”. Com o objetivo de garantir a segurança delas e dos presos, quase todos eles membros de facção, as identidades foram preservadas.
A reportagem chegou ao local por volta das 7h20 da manhã. Com câmera fotográfica no pescoço e bloco e caneta na mão, se aproximou das pessoas, a maioria delas mulheres, e foi surpreendida pelo sorriso de uma senhora de 58 anos. Ela aguardava para ver o filho, de 29, acusado de tentativa de homicídio. Preso desde 2016, ela sonha com o dia em que ele ganhará liberdade, mesmo sabendo que faz parte de facção e que isso representa risco também nas ruas.
“Se Deus quiser, ele sai em janeiro do ano que vem”, diz ela, com o olhar cheio de esperança. “Ele tem o quarto dele limpinho em casa e está aqui, nessa situação”, comenta, descrevendo o lugar como “muito sujo”. “É rato, barata, fezes correndo a céu aberto. Um sofrimento para mim, para ele, para toda a família. Nunca imaginei passar por algo assim”, completa a mãe, relembrando a primeira visita. “Entrei chorando e saí chorando. Até hoje, não olho para trás quando vou embora, e peço a Deus que ele faça o mesmo quando sair daqui; não olhe para trás”, reforça.
Alguns metros adiante, uma senhora de 74 anos, sentada sozinha em um banco de concreto, chama atenção ao acompanhar, com olhar triste, a cada familiar que cruza o portão de entrada do Central. “Não posso entrar”, diz ela, que cumpre punição de 4 meses após ser flagrada tentando entrar com um relógio de pulso no presídio, durante visita ao filho de 48 anos, preso há 8 por tráfico de drogas. “Mesmo assim, venho toda quarta e domingo, e peço para alguém entregar as coisas para ele”, conta a senhora, que leva comida e produto de higiene. “A comida daí é muito ruim”, exclama, se referindo a alimentação dos presos conhecida popularmente como “sopão”. “Se Deus quiser, ele ganha liberdade condicional em outubro do ano que vem. Isso que eles levam aí dentro não é vida”.
O sentimento de tristeza também invade o coração de uma avó de 77 anos. Não era lá que desejava visitar o neto, de 23. “45 minutos mudaram a vida dele”, conta, lembrando da prisão em maio do ano passado. “Ele foi baleado durante perseguição policial e ficou internado por vários dias. Graças a Deus, se recuperou. É protegido por Deus”, acredita a avó, mesmo diante da atual realidade do garoto. Acusado de envolvimento em um assalto, trocou o conforto de casa e as salas da faculdade pelas celas do Central. “É muito sofrido vê-lo nessa situação. Independente do erro que possa ter cometido, eu o amo”, lamenta, afirmando, porém, que o garoto não integra nenhuma facção, o que permite que fique em uma galeria separada daquelas dominadas por estes grupos.
O relato da avó foi acompanhado atentamente por uma mulher que estava sentada logo ao lado. Ela permaneceu o tempo todo em silêncio. Com cigarro e isqueiro na mão, demonstrava nervosismo, ansiedade. Instantes depois, foi a sua história que prendeu nossa atenção. Mãe de quatro jovens, dois deles, integrantes de facção, estão presos: um por porte ilegal de arma e tentativa de homicídio, no Central; e outro por tráfico de drogas, no Paraná. “Esse é o primeiro Natal que vou passar longe deles”, conta, chorando.
O jovem recolhido na Capital está preso pela segunda vez. Agora, são nove meses atrás das grades. “Ele tem audiência marcada para dezembro. Já houve três e a suposta vítima da tentativa de homicídio não aparece”, conta a mãe, que não o vê há seis meses, consequência de uma prisão por tráfico no início do ano. “Estava morando na casa cedida pelo meu outro filho, preso em Curitiba, quando a polícia fez uma operação lá. Apreenderam droga e dinheiro. Pediram para acompanhar até a delegacia, e acabei presa”, conta ela, que passou seis dias no Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, sentindo na pele o que é ficar privado de liberdade.
“Desmaiei ao chegar lá. Primeiro me colocaram em uma peça escura, sozinha; no outro dia me levaram para a cela, com mais umas doze mulheres. Não comi os seis dias, só chorava, tomava café preto e fumava. Não sei como aguentei. Foi o fim do mundo pra mim”, lembra, contando que o espaço também era superlotado, com detentas dormindo no chão. Um dia depois de sair da prisão, com a ajuda de um advogado contratado pelo filho, ela o encontrou. “Ele chorou muito, pediu desculpas e falou que o dinheiro apreendido era para comprar uma casa para mim”, conta, com o olhar sofrido. Inocentada pela justiça, agora faltam dois meses para poder rever o filho que está no Central.
A dor de não poder ver os dois é grande. Mesmo assim, todos os domingos ela encontra o ex-marido na frente do Presídio Central e entrega roupas e comida, para que ele entregue ao filho. “Trago a roupa lavada, passada, como se ele estivesse em casa”, conta, provando que o amor de mãe não tem limites. “Essa situação é horrível. Choro muito, não como… já emagreci 10 kg. A vida ali dentro é um inferno. É rato, barata; acho que é o pior presídio que existe”, ressalta ela, que mantém o filho lá dentro com os R$ 20 reais que ganha por dia, e a ajuda do ex-marido. “Existe um limite de 10 itens por preso, e se passa disso, as vezes temos que colocar comida no lixo”, lamenta. Sobre a liberdade deles, ela é realista. “Não cultivo muita esperança para não sofrer mais”.
Muito distante dos anteriores, o depoimento de uma jovem de 24 anos, esposa de um preso acusado de um homicídio e duas tentativas de homicídio, revela o outro lado do sistema. “Tudo o que tem na rua, tem lá dentro; drogas, dinheiro”, afirma ela, contando que o marido vai a júri popular ainda em 2019. Ele está preso há 3 anos. “Falei para Deus que se for para ele sair e fazer alguém chorar de novo, que fique preso. Se ele sair, aí mesmo que vou falar que no Brasil não existe justiça”, reforça, receosa também pelo fato do homem ser membro de uma facção da região. “A gente fala tanto em superlotação, que é sofrido aí dentro, mas então por que as pessoas não mudam de vida? Por que não param e pensam no próximo? Ele poderia estar construindo outra história”, finaliza.
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Reportagem: Bruno Flores, Murilo Dannenberg e Thaís Lauck
Foto: Thaís Lauck