Um relato de quem está na linha de frente do enfrentamento à Covid-19

20/03/2021
Soélen Silva é de Dois Irmãos, mas vive e trabalha em São Paulo (Fotos: Arquivo pessoal)

Soélen Silva é de Dois Irmãos, mas vive e trabalha em São Paulo (Fotos: Arquivo pessoal)

Enfermeira Cardiointensivista da UTI adulto do Hospital do Coração – HCor, de São Paulo, a dois-irmonense Soélen Silva, de 30 anos, vem atuando, desde o início da pandemia, na linha de frente no enfrentamento à Covid-19. Vivendo em São Paulo há 11 anos, ela também é Preceptora de Estágio no Centro Universitário São Camilo e Pós-graduada em Cardiologia, Terapia Intensiva e Docência.

Atendendo a um pedido do Jornal Dois Irmãos, ela relatou o que viveu neste último ano, em que mais de 280 mil pessoas já morreram em decorrência da doença no Brasil. Leia a seguir:

 

“Há exatamente um ano, nossos dias na UTI começaram a ficar turbulentos; chegava paciente do pronto-socorro com uma doença que ninguém conhecia. Todos se protegiam e tratavam-na de forma empírica, sem nenhuma base científica. Começamos a nos desesperar pelo simples, não tinha máscara N95 para todos. Inicialmente passamos a usar por 7 dias contínuos a mesma, depois 14, 30, até os insumos básicos como aventais descartáveis, gorro, propé, e inclusive a fiel escudeira, máscara, estivessem sendo produzidos pelo mundo em larga escala.

Ao entrar num leito para intubação, a tensão predominava; a preocupação em se contaminar, mesmo com todo o cuidado, brigava com a concentração que nos envolvia no procedimento; ambas não podiam ocupar o mesmo espaço. Dessa forma, todos com a face shield (escudo facial) e máscara, mal se ouviam, pois o cansaço da tensão, o suor pela roupa de baixo do avental impermeável e os equipamentos de proteção individual, faziam a voz repercutir com mais intensidade para tudo correr o mais breve possível, pelo bem do paciente e da equipe, da qual também poderia ser a próxima a se contaminar. Além das intubações cruéis, começou a faltar materiais, insumos, equipamentos, e aí a “seleção de Sophia” entrou em ação, escolher qual paciente se beneficiaria de uma máquina de diálise, qual paciente teria ou não leito de UTI, foram decisões da equipe médica comumente vistas pelo mundo.

 

Eu acordava preocupada, dormia tensa, não tinha mais vida social; o máximo que fazia era ir ao supermercado comprar o básico e necessário para a semana. As ruas movimentadas de São Paulo foram ocupadas pelo silêncio; simplesmente o trânsito acabou. Reclamávamos todo dia de perder horas no trânsito, e de repente ele some sem se despedir, assim como muitas vidas e famílias se foram sem dar chance ao “Eu te amo, vai com Deus”. Todos em casa tentando dispor de sanidade mental. Os que estavam hospitalizados faziam videochamadas através dos psicólogos que se dispuseram a estreitar a distância provocada pelo medo, pela empatia.

Hoje, a segunda onda toma conta do nosso dia a dia novamente, a economia de muitos estabelecimentos faliu, nós profissionais da saúde choramos porque não queremos viver isso tudo novamente; nunca tivemos uma oferta maior que a procura por emprego, estamos exaustos, costas pesadas, ombros tensos, dores físicas e principalmente mentais. Muitas vezes não temos tempo para ir ao banheiro ou comer, porque damos prioridade ao cuidado. Muitos colegas meus foram parar na medicina do trabalho por depressão, síndrome do pânico e ansiedade. Hoje, a nossa maior preocupação é evoluirmos para síndrome de Burnout por causa da exaustão consequente desse vírus, ou depressão provocada pelo desemprego. Vimos todos os dias alguém ou vários serem intubados, e depois de alguns dias serem ensacados, por dois sacos mais precisamente.

 

Quando achávamos que tudo estava voltando aos eixos, o “boom” estourou novamente, as pessoas precisavam sair de casa, socializar, e as consequências foram drásticas: a segunda onda, igual o mar, que recua, silencia, mas quando vem com a onda forte, derruba. Não há vagas nas UTIs, não temos materiais e equipamentos para todo mundo. Já temos protocolos estabelecidos de prevenção, mas não temos ainda um tratamento efetivo para este vírus; a ciência não conseguiu descobrir. Estamos vacinados, o que de certo modo é confortante por saber que os sintomas serão mais leves se nos contaminarmos, mas mesmo com a vacina ainda podemos transmitir o vírus, e aí eu te pergunto: como proteger nossos familiares? Que ainda não receberam a vacina e, a data para tal se encontra num futuro muito distante.

 

É assustador! Tentamos ser resilientes diante das circunstâncias. Escrevo esse relato num dia que transfiro pacientes para a UTI retaguarda no pronto-socorro, para transformar a nossa UTI inteira, em UTI Covid, que se encontra com 100% da taxa de ocupação.

Um ponto positivo desta pandemia foi a luta pela valorização da Enfermagem diante da visão do mundo. Sermos reconhecidos como ciência, como classe profissional que deve ter reconhecimento financeiro, não somos voluntários e nem heróis, somos enfermeiros e técnicos de enfermagem. Sem a enfermagem não há cuidado! Nós quem seguramos sua mão quando você está com medo de ser intubado, e nós quem cuidamos de todas as suas medicações quando estiver “dormindo” para ver você chegar à fase da reabilitação após semanas. Mas há pontos negativos também, como o preconceito; ainda existe quem julga-nos como as pessoas que transmitem o vírus, nos ignorando, desrespeitando no metrô, no elevador, na vid; imploramos somente por respeito.

Isso é paixão profissional, me realizo todos os dias fazendo o que eu amo, não estava escrito nos livros durante a minha graduação que teria uma pandemia no meio da minha carreira profissional, mas todos estamos buscando dias melhores, para sempre.

 

Uma breve mensagem da nossa realidade:

‘Pressão caindo, saturação diminuindo, bomba apitando.

Punciona mais um acesso.

Faz volume!

Olha monitor.

Vai parar!

Checa pulso.

Parou!

Chama equipe.

Inicia manobras de RCP.

Puxa carrinho, tubo numa mão, laringo na outra.

Desfibrilador, aspirador, ambú.

Aspira adrenalina, administra adrenalina.

Olha cronômetro, coordena, orienta.

Voltou!

Sedação, noradrenalina, vasopressina.

Sonda aqui, sonda ali.

Traz material estéril, leva material sujo.

Sangue, vômito, fezes, xixi.

Troca tudo, deixa tudo limpo.

Muda o decúbito.

Monitora, faz eletro.

Traz mais uma bomba, cabe mais uma aqui.

Aparelho não funciona, emenda, improvisa.

Aspira.

Fica de olho!

Dieta, exames.

Chama médico, laboratório, banco de sangue. Fisioterapeuta, manutenção.

Confere a prescrição.

Liga, encaminha.

Pergunta, responde.

Estuda, se especializa, estuda.

Conversa, conforta.

Sofre, torce.

Vai dar certo!

Admissão, alta, óbito.

Família, abraços, risos, choros.

Exaustão!

Exaustão!

Carga horária alta.

Salário baixo.

Um.

Dois.

Três empregos.

Vai pra casa, sonha com o plantão de ontem, de hoje, de amanhã.

Vamos lá que vai começar tudo de novo.

 

Sabe de quem é essa rotina? Da enfermagem!

Sabe quem te dá assistência 24h por dia num hospital? A enfermagem!

Sabe quem em quase 100% das vezes percebe que você está desestabilizando? O profissional de enfermagem.’ (Anônimo)

 

Proteja-se!

Soélen Silva / São Paulo / 15/03/2021”


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