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Dispenso rótulos. Rótulos servem para embalagens, que costumam estar dispostas em prateleiras de supermercados. Muitos preferem se servir de opiniões processadas, com base apenas no feitio da embalagem. É um direito, e eu respeito.
O problema é que opiniões que podem ir direto do freezer ao forno de micro-ondas geralmente não contêm respeito entre os ingredientes. Seu principal conservante é o ódio, que não à toa rima com sódio. Portanto, esse tipo de opinião não é recomendado a quem sofre de hipertensão. Tente ser mais natural (e racional) no que você consome, experimente o pensamento orgânico, perceba a diferença entre ter voz e ladrar. Deixe a discussão de quem tem o maior palito para quem tem o cérebro diminuto e cujo horizonte não passa de uma tampa de privada. Mais importante do que ter lado é entender que o que realmente importa está além da dicotomia tacanha.
Neste contexto, a maior dificuldade nem é identificar uma mentira, mas lidar com as meias verdades, que podem ser tão ou mais perniciosas. Por óbvio, uma meia verdade sempre contém a metade de uma mentira – ou, no mínimo, um despiste, uma omissão. E a armadilha reside no fato de que elas (a meia verdade e a mentira pela metade) costumam se fundir e confundir. É mais ou menos o que se observa no debate (ou seria desgaste?) político sobre a reforma da Previdência. Ou, ainda, na sanha desvairada por armas de fogo, como se as palavras de alguns já não fossem letais o suficiente.
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Voltando aos rótulos, impressiona a facilidade com que muitas pessoas definem umas as outras. A maioria de nós, para não dizer todos, só é visível na superfície. Ninguém sabe ao certo a quantidade de camadas que cada um carrega interiorizadas. São camadas distintas que se misturam como tinta. Camadas de dor, de alegria, de angústia, de prazer, de frustração, de força, de medo, de energia, de dissabor, de (des)contentamento.
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Num exemplo clássico, muitos dizem ‘eu não tenho nada contra negros’, ‘eu não tenho nada contra as mulheres’, ‘eu não tenho nada contra gays’, deixando aquele ‘mas’ implícito, suspenso no ar. E o que começa com uma negação quase sempre disfarça um pensamento contrário, afirmativo, que tenta se justificar.
Porém, como mensurar a força opressiva do racismo sobre os negros sem nunca ter sido negro um único dia na vida? Como relativizar a importância do feminismo sem nunca ter sentido na pele o tratamento desigual por conta de uma simples questão de gênero? Como julgar a orientação de algo tão íntimo, tão intrínseco?
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Já foi dito que é preciso exercitar a empatia, a ação de se colocar no lugar no outro. Trata-se, realmente, de um exercício de aproximação, que necessita da prática constante para se transformar em hábito. No entanto, tenha em mente que ninguém nunca será o outro; cada um leva submersa a porção maior do seu iceberg.
Vale sempre recordar os versos de Até Amanhã, de Adoniran Barbosa e Wilma Camargo:
Até amanhã, durma bem
Tenha bom sono
Não deixe que as amarguras
Te levem ao abandono
Por mais que digam os outros
Ninguém é o nosso retrato
Cada um sabe melhor
Onde lhe aperta o sapato
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Apesar da sonoridade, não confunda empatia com (falsa) simpatia. Simpáticos, até os rótulos são...
(Publicado na edição de 31 de maio de 2019)