Felipe Borba, Delegado de Polícia e Mestre em Direito
Em tempos remotos, a vítima desempenhou papel de protagonista no âmbito dos sistemas penais. Tomado o conflito do qual surgiam as condutas consideradas criminosas como eminentemente individual e particular, a legislação assegurava ao ofendido poderes de punição sobre seu algoz, sendo os primeiros limites impostos por normas como a famosa Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”.
Nos últimos séculos, no entanto, ocorreu o que os estudiosos da Criminologia sintetizam como processo de neutralização da vítima. O conflito criminal passa a ser considerado de interesse público, sendo administrado, assim, por instituições do Estado. A acusação, o processo, o julgamento e a execução da pena passam a escantear o principal interessado: aquele que sofreu, diretamente, a ação delituosa, a vítima.
Outros fatores contribuíram para a sedimentação desse modelo de (in)justiça. Teorias que procuraram explicar o fenômeno criminal exclusivamente a partir do sujeito que o pratica, desconsiderando aspectos sociológicos ou circunstanciais, naturalmente acabaram por deixar a vítima em segundo (ou terceiro) plano, focando apenas nas técnicas de combate à criminalidade, com caráter estritamente punitivo.
Vez ou outra, mas de forma fragmentada, surgem normas que buscam tutelar os interesses das vítimas. A título de exemplo, temos regras que: autorizam a vítima a atuar como assistente da acusação; garantem o direito de a vítima ser notificada sobre o andamento do processo, tendo ciência sobre a prisão ou a soltura do acusado; admitem acordos civis entre a vítima e o acusado para delitos que tenham penas menores; deixam a critério da vítima a decisão sobre a instauração de processo contra o autor do fato, em determinados crimes, como no estelionato (“golpes” em geral); asseguram medidas protetivas de urgência para os casos de violência doméstica contra as mulheres, a fim de cessarem as situações de risco; determinam que crianças e adolescentes não sejam submetidos a depoimentos comuns, principalmente em crimes de abuso sexual, devendo observar técnica especial, com o intuito de evitar maior sofrimento.
Nesse espírito de evolução, e com base em preceitos modernos de justiça restaurativa, encaixa-se o Programa Mediar, da Polícia Civil, por meio do qual a vítima e o acusado resolvem o conflito que deu ensejo ao delito. Com o auxílio de um policial mediador, imparcial e capacitado para a função, a vítima tem a oportunidade de restaurar vínculos sociais, familiares, de vizinhança, abalados pela situação delituosa, e tudo de maneira civilizada, sem apego ao compreensível, mas sempre pernicioso, desejo de vingança.
Interessante observar que o pretenso interesse público, que outrora serviu de fundamento para retirar a administração do conflito das mãos da vítima, agora parece recomendar a oportuna restituição, sendo do interesse de toda a comunidade que seus integrantes superem desavenças com maturidade, equilíbrio e, o mais importante, com eficiência. Na prática, temos mediado acordos, na Delegacia de Polícia de Dois Irmãos, entre pessoas (vizinhos, parentes, colegas de trabalho) que já somavam mais de uma dezena de ocorrências registradas reciprocamente, e que, após a mediação, alcançam o entendimento, firmam pactos de boa convivência, acertam formas de reparação de eventuais danos, e encerram os conflitos. Alguns, é claro, ainda possuem dificuldades de lidar com esse novo modelo de resolução, o que talvez a própria história já mencionada explique: agora a vítima tem que ser revalorizada, convidada a se desgarrar do mero rancor e a novamente se empenhar na solução do “seu crime”.
No século XX, o jurista alemão Gustav Radbruch, refletindo sobre os diversos temas acerca do sistema penal, concluía no sentido de que “nós não precisamos de um Direito Penal melhor, mas de algo melhor do que o Direito Penal”. A retomada do “empoderamento” da vítima parece ser um passo relevante para este algo melhor. As instituições devem se adaptar, para que não se limitem, diante de um fato criminoso, a identificar “a vítima da vez”, estruturando-se para que seja “a vez da vítima”: a vez de a vítima ter seus interesses considerados e tratados com prioridade, sem paixões, mas também sem a frieza própria de um sistema antes projetado apenas para punir.