Alceu Mário Feijó (Piloto)
Era final de fevereiro e estava preparando o CESSNA 170 PT ALD, para mais uma missão de reboque de faixas, sobre o litoral do Rio Grande do Sul. O voo seria exatamente entre Tramandaí e Torres com retorno para o aeródromo de Osório, local onde me encontrava no momento.
Me acompanhava na inspeção pré voo do avião, um jovem de uns 20 anos, piloto do Aeroclube local, que estava voando um Ultra Leve de um dos sócios do aeroclube. Nele, realizava voos panorâmicos, para adquirir experiência e ajudar o proprietário nos custos de manter a aeronave. Um acerto entre os dois, que agradava gregos e troianos.
Em nossos voos de publicidade no litoral, voávamos sempre com colete salva-vidas, pois em caso de alguma pane de motor sobre o mar, o pouso na agua era inevitável e assim, apesar de todas as dificuldades inerentes a uma situação destas, ficar flutuando tranquilamente sobre a superfície do mar aguardando socorro, seria uma dificuldade a menos.
Enquanto conversávamos, peguei meu colete salva vidas e comecei a vesti-lo, quando, para minha surpresa, o jovem começou a rir de mim, dizendo:
– Mas bahh Feijó, que frescura é essa? Usar colete salva vidas...
Fiquei um tanto incrédulo e constrangido com sua reação, ao me ver vestindo o colete, e sem lhe entender direito lhe questionei:
– Ué... frescura por quê? Eu vou voar sobre o mar!
– Mas vocês voam ali na beirinha do mar, não é lá no fundão...
– Mas se eu tiver uma pane, vou ter que pousar em frente na agua, porque a areia da praia está lotada de pessoas e apesar de ser perto, eu não consigo nadar aqueles poucos 200 metros de mar revolto!
Apesar da lógica da minha explicação, ele demonstrou não entender do porquê de eu usar colete, achando provavelmente ser uma espécie de exibicionismo de minha parte, o que me deixou meio chateado e mais constrangido. Me despedi dele, e com o colete no pescoço, embarquei no ALD e fui voar.
O que passo a narrar agora, faz parte de fatos que realmente aconteceram, mas que eu soube por intermédio de narrativas de terceiros, podendo algum detalhe não ser fato fiel, porém o assunto em si realmente aconteceu.
Um mês e alguns dias depois do meu episódio com o jovem gozador, ele e o proprietário do ultraleve se deslocaram de Osório para Torres. A missão era realizar voos panorâmicos no Festival de Balonismo, que acontecia naquele município. O vento era muito forte e decidiram voar sobre o mar, afastados algumas centenas de metros da costa devido à turbulência orográfica que se manifestava fortemente sobre o continente. Era um daqueles dias em que o melhor mesmo seria ficar em casa.
O que realmente aconteceu com a máquina, não sei. Mas, com certeza, por um desarranjo mecânico no ultraleve este veio a se precipitar no mar, a muitos metros afastado da costa, e foi a pique. Deixou os dois tripulantes em uma situação extremamente complicada, tentando boiar sem coletes salva-vidas. Seus capacetes tinham uma forração interna de isopor que fornecia alguma flutuabilidade sobre a água, e eles foram destinados ao jovem que não sabia nadar.
O proprietário então, que tinha um porte mais atlético e praticava natação, pediu para ele ficar calmo, que tentaria nadar até a praia, em busca de socorro. E, com muito esforço, conseguiu chegar na areia da praia em Curumim, onde, totalmente exausto, deitou na areia e desmaiou de cansaço. O jovem não teve a mesma sorte, pois como não sabia nadar desapareceu nas gélidas águas do Atlântico sul. As buscas por seu corpo duraram vários dias, mas nunca foi encontrado.
Quando me contaram o ocorrido, fiquei muito triste por uma vida tão jovem perdida de forma tão desnecessária. Imaginei seus momentos de angústia e desespero, tentando flutuar sem apoio de um colete e com a noite se aproximando e o frio lhe tolhendo os movimentos lentamente. Talvez arrependido por tantas decisões erradas em seus procedimentos e planejamentos de voo, como:
A decisão de decolar, provavelmente pressionado pela necessidade de aproveitar o momento do evento, para realizar voos que lhe renderiam algum dinheirinho e algumas tão preciosas horas de voo;
A decisão de não retornar, face as fortes manifestações dos elementos;
A decisão de voar longe sobre o mar, confiando na infalibilidade da máquina, com a certeza de que nada lhes aconteceria. Talvez imaginasse como tantos outros iniciantes da vida, que estas coisas só acontecem com seres distantes de nosso convívio, sem rostos e sem sentimentos, encontrados somente nos relatórios do SIPAER.
E, por fim, o arrependimento de não estar com a segurança de um colete salva-vidas. Este, com certeza, o mais amargo dos arrependimentos e a mais amarga das lições, em sua curta vivência terrena.
Enquanto me recolhia aos mais tristes pensamentos, me veio à lembrança o diálogo constrangedor que tivemos sob as asas do ALD. Sobre a necessidade de tão importante acessório de segurança em voos sobre o mar e de sua zombaria e menosprezo às minhas argumentações sobre isso...