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A primavera vai completando seu primeiro mês e parece que ainda não saímos do inverno. Eu sei, em poucas semanas estaremos reclamando do calor, com saudade desse friozinho... fazer o quê? Nossos humores variam mais que o clima e às vezes nem uma boa rima nos tira do sério, nos faz sorrir. Aliás, por que essa mania de desfazer a graça das coisas e fazer da desgraça alheia motivo para falsas alegrias? (Ah se todos tivessem o mesmo zelo com o próprio rabo...)
Cada vez mais sabemos menos quem somos. Não que falte quem nos defina com propriedade e boa dose de picardia, acontece que biografias não autorizadas costumam render dores de cabeça. Precisando de histórias dos outros para alimentar a própria alma? Leia um livro. A feira de Dois Irmãos é neste final de semana, boas escolhas não faltam.
Falando nisso...
Um mundo alijado das letras é como sopa sem gosto, caldo insosso sem serventia nem para regurgitar. Lamento pelos desafortunados obrigados a se servir das sobras dos vigários e seus contos. Se ainda há quem morra da fome física, excruciante, literal, é por culpa dos espíritos desnutridos que abundam. Seguimos (bem) longe de compreender o propósito da criação, seja ela divina ou mera invenção.
O fato é que somos predadores por esporte, não por instinto. (Traga-me a garrafa daquele tinto que obscenamente custa a bagatela necessária para alimentar dezenas de famílias.) Como eu ia dizendo/pensando, temos o umbigo sensível, vaidoso, um buraco sem fundo que engole boas intenções, mastiga nossa (duvidosa) moral e cospe/arrota nossos pecados. A propósito, de que lado você está? (Por favor, sirva-me outra taça.) Não gostou? Paciência, não era para ter graça. (Pode levar a garrafa!)
Tantos livros para ler...
E ainda assim será pouco, insuficiente. O conhecimento adquirido caberá em uma partícula de pó, não mais que isso. Superestimamos o tamanho de nossas valências diante de um universo que nos enxerga – se é que é possível ver algo – como amebas diminutas.
Por sorte, não alcançamos a dimensão da própria estupidez, da nossa insignificância, ou não sobreviveríamos. Para muitos, a verdade é um incômodo que deve ser varrido para debaixo do tapete sempre que possível. (Alguém empresta a vassoura?)
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INSTANTE NA ESTANTE
Um vento quente envolveu os seus corpos e eles permaneceram ali, sentindo aquela onda de fogo que se aproximava e despertava nos dois milicianos a necessidade de encostar um no outro. Naquele instante, passaram a pertencer um ao outro. Ele apertou a sua mão e Yana, certa de não poder mais resistir, respondeu ao toque. Voltaram para a pequena casa. Lá, tinham à disposição um quarto, duas camas de solteiro e velhas cobertas de lã deixadas pelo antigo zelador. Beijaram-se com paixão, fechando a porta para não serem incomodados por fogo amigo. O Kosovo os tinha unido ali, os tinha amalgamado àquele cenário quase surreal, ao mito da guerra que esconde o medo e expande o prazer carnal. Miro estava nu, despido de qualquer impulso que não fosse o seu desejo incontrolável. Yana estava nua, com a sua imensa necessidade de ser gratificada. Pela primeira vez, o fuzil e a faca, atirados ao chão junto às fardas suadas, não tinha nenhuma importância. Yana experimentou a sensação inédita de entregar-se completamente a um homem, de realizar as suas fantasias mais íntimas. Pela primeira vez para ela, a penetração não significou um ato de violência. Amaram-se loucamente como dois condenados à mesma sorte, como se a vida estivesse para acabar naquele humilde quarto que dividia os dois territórios agora inimigos, o kosovar e o sérvio.
Atirem direto no meu coração – Ilze Scamparini (1958)