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– Explique-se, por favor.
– Não preciso.
– É o que você pensa.
– Ora, tenho minhas liberdades, inclusive a da rebeldia.
– As liberdades, em sua maioria, são frívolas e suspeitas.
– Pois suspeito que o amigo esteja tergiversando.
– E você parece querer se meter em minha liberdade de tergiversar.
– Muito prolixo, pouco profícuo.
– Aforismos não são meu forte, necessito espaço para sustentar a coerência do pensamento.
– Isso não é liberdade, é prisão.
– Somos todos prisioneiros, meu caro, principalmente da culpa. A propósito, e se a própria liberdade for uma prisão?
– Bem, aí pouparemos as desculpas.
***
– Entenda que a maior parte da vida se dissolve em um arranjo monocromático, de previsibilidade sufocante. Acostumamo-nos a uma receita básica, quase sem tempero, para saciar apenas a fome mais urgente. Com sorte, talvez nos sobrem alguns respingos de um espumante de procedência duvidosa, mas é melhor não contar com isso. A sede da grande massa acabará aplacada pela resignação.
– Então por que não se revoltar?
– Vai ver, porque toda revolta costuma voltar-se contra o revoltado.
– Pois isso me deixa ainda mais revoltado!
– Controle-se! E abaixe essa cabeça!
***
– As perspectivas podem mudar num piscar de olhos, para ficar na vala comum da expressão popular. Há casos irremediáveis (e talvez a maioria seja), ainda assim é curioso perceber como situações pontuais acabam se vendo do avesso de uma hora para outra, para o bem ou para o mal. Prova de como estamos reduzidos à força do acaso e suas estripulias, de como somos meros fantoches agindo sob a falsa máscara de ventríloquos. Bando de coitados!
– Sua descrença me constrange.
– Não fosse eu descrente, tomaria por elogio.
– Não há elogio possível a um ranheta.
– Tens razão, meu caro. Não raro, compreendo o elogio como insulto, ofensa.
– Acontece que as interpretações de um ranheta sempre divergem do fato.
– E o fato é que estou andando e cagando para a sua interpretação. Suma daqui!
***
– Depois daqui, vamos para onde?
– Não faço ideia.
– Alguém deve saber.
– Ora, tem gente que não sabe nem onde está, que dirá depois.
– Tenho me perguntado se ainda vale a pena.
– O quê?
– Tudo isso.
– Tudo isso, o quê?
– Você não entenderia.
– Não me subestime.
– Não é isso, só não sei por onde começar.
– Tente pelo começo.
– E se eu não souber onde tudo começa?
– Então vá pastar!
*
INSTANTE NA ESTANTE
Debaixo de sua mão, a superfície da coxa era firme e suave, ligeiramente úmida, talvez de suor ou algum creme. Será que antes de se deitar Chabela havia passado um dos cremes que Marisa tinha no banheiro? Não a vira tirar a roupa; deu à amiga uma camisola sua, muito curta, e ela foi se trocar no closet. Quando Chabela voltou, já estava de camisola; era uma camisola semitransparente, que deixava de fora os braços e as pernas e um começo de nádega, e Marisa lembra que pensou: “Que corpo bonito, como está conservada apesar das duas filhas, é a academia três vezes por semana”. Continuou avançando milimetricamente, ainda com o temor crescente de acordar a amiga; agora, apavorada e feliz, sentia que, por instantes, na cadência das respectivas respirações, fragmentos de coxa, de nádega, de pernas das duas se roçavam e, imediatamente, se afastavam. “Ela vai acordar agora mesmo, Marisa, você está fazendo uma loucura”. Mas não recuava e continuava à espera – o que estava esperando? –, como que em transe, do próximo toque fugaz. Sua mão direita continuava pousada na coxa de Chabela, e Marisa percebeu que tinha começado a suar.
Cinco esquinas – Mario Vargas Llosa (1936)