Por Alan Caldas – Editor
Acordo cedo. Bem cedo. A amada e doce Angela segue dormindo.
Vou ao banheiro e em frente ao espelho vejo o meu espelho da vida. E nele está a foto desse então jovem senhor repórter.
É Honduras. América Central. Anos 80.
Olho para ele (ainda sou eu?) naquele local.
Há os ruídos da floresta, nessa foto. Há o som dos conflitos. Também há meus silêncios nessa foto. E com a visão da memória, eu daqui me vejo lá, tão cheio daquelas jovens "certezas" que eu tinha.
Há algo nessa foto que ficou aprisionado lá nos confins do meu tempo. E um pouco triste e um pouco feliz, não posso deixar de me perguntar, como Oswaldo Montenegro pergunta a ele mesmo naquela música “A Lista”:
– Onde você ainda se reconhece?
Nessa foto passada? Ou no espelho de agora?
Essa lembrança vinda com a foto lá dos anos de 1980 faz minha cabeça girar. Saltam do tempo as dúvidas que essa música A Lista provoca em todos que (pelo menos) tentaram viver intensamente como eu tentei. Perguntas como estas:
E os grandes amigos de anos atrás.
Quantos você não encontra mais?
E os sonhos que tinha.
Quantos você desistiu de sonhar?
E os amores jurados para sempre.
Quantos você conseguiu preservar?
E os mistérios que você sondava.
Quantos você conseguiu entender?
E os segredos que você guardava.
Quantos hoje são bobos e ninguém quer saber?
E as mentiras que você condenava.
Diga, quantas você teve que cometer?
Ahhh, sim:
Quantos defeitos curados com o tempo eram o melhor que havia em você?
Quantas canções-lixo você não cantava mas hoje as assobia para sobreviver?
E a mais séria de todas as perguntas:
Quantas pessoas que você amava hoje acredita que amam você?
***
64 anos
23.360 dias (+ ou -)
560.640 horas (+ ou -)
***
Para quem acreditava que, se muito, chegaria aos 30 ... até que foi, né?
***
Pego a foto e, por um instante, penso em rasgá-la. George Orwell pode estar certo.
Novilingua = nova história. Simples assim.
Digo a mim mesmo:
– Apague aquele tempo de risos e lágrimas para os que passaram por ti. Rasgue-a. Rasgue o tempo agora!
Olho para ela novamente. Se faz um silêncio intenso na minha cabeça enquanto imagens e sons vão se sucedendo em minha lembrança.
Há tantas imagens e sons, dentro de mim. E essa foto e suas circunstâncias de então me traz tudo de volta. Ruidos de todos os tipos. Risos. Choros. Gritos. Silêncios. Olhares. Afagos. Medos. Coragens. Partidas. Chegadas. Sims. Nãos. Tantas recordações que se pode e tantas outras que não se pode falar.
Tudo vindo dessa foto que é um emblema de um tempo.
Rasgue-a, digo a mim mesmo.
Rasgue ela AGORA!!!, me repito mentalmente.
Rasgue. Rasgue. Raaaasgue!!!!
Livre-se desse tempo.
Mas uma mansidão toma conta de mim. E sorrindo em silêncio recoloco a foto bem quietinha no porta-retrato do meu tempo.
Levanto os olhos e me reconheço:
– Sou o espelho do agora.
Agradeço a todos e todas que passaram por mim nesses anos tantos. Agradeço a todos. E a alguns tantos, de joelhos imploro o perdão.
Embora não exista conforto em muitas das verdades dessas lembranças, ainda assim lá se foram 64 anos por aqui.
E, como disse:
Para quem acreditava que, se muito, chegaria aos 30 ... até que foi, né?