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A iminência de uma tempestade desperta um fascínio estranho. A tormenta se armando, as nuvens escuras e espessas movendo-se rapidamente, obstruindo as últimas nesgas de claridade. O estrondo dos trovões ao longe ganhando força, proximidade, até que de repente um clarão irrompe, antecipando o estampido de um raio a uma distância indecifrável. (A mística do fim do mundo.)
Não se trata de sadismo, de desejo mórbido pela tragédia; longe disso. É tão somente a contemplação da exuberância da força da natureza, das suas formas que se fundem e formam uma pintura por vezes dramática, por vezes imperiosa, tantas vezes mera consequência das nossas inconsequências. A chuva, o vento, o grito, o riso, tudo é expressão, tudo tem razão de ser e sentir, tudo está em nós. (E nós, o que temos feito?)
Não somos perfeitos, mas nossos defeitos têm nos atrapalhado além da conta. Parece que fazemos pouco caso do futuro, parece que queremos viver no passado, parece que o presente não é o único tempo palpável. O que veio antes e o que virá depois são apenas ecos do que vem ao nosso encontro neste momento. Não adianta apertar o passo ou diminuir a passada, pois o caminho não se desfaz antes do fim. (Entenderam?)
Não me entendam mal, eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. (Salve, Belchior!) Tenho tentado, asperamente, costurar meus retalhos, estabelecer alguma conexão plausível com o que pretendo logo ali, depois do medo, cruzando a esquina da desesperança, passando pela praça do desassossego e caindo na rua sem saída da incompreensão. (Se eu bebi? Não lembro.)
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A neblina que cobre campos também encobre vultos, fantasmas que preferimos disfarçar na cortina de fumaça que nos asfixia. Se o mundo é nebuloso por si só, por que teríamos que jogar sempre às claras, sem subterfúgios? Mais do que bem-vindos, disfarces são necessários – a dissimulação pode ser um defeito com virtudes.
– O que você sabe sobre mim?
– Eu? Quase tudo.
– A distância entre quase e tudo pode ser nada.
– O que você quer dizer com isso?
– Ué, você não sabe quase tudo sobre mim?
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Dia de sol, quase inverno. No varal, a roupa tenta secar no balanço do vento acanhado. Nas mãos, a lembrança doce do cheiro de bergamota. E quem se importa com o que vem depois? Fragmentos de uma tarde que parece estacionada num dia que sempre foi seu, não fosse o barulho ritmado do tempo a nos situar no espaço em movimento, ora com pressa, ora arrastado, mas sempre com a mesma ânsia de seguir em frente sem olhar para trás.
– Você vem sempre aqui?
– Apenas uma vez.
– Uma vez por mês? Por ano?
– Uma vez na vida.
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O lado bom da corrida do tempo é o aprendizado. São as experiências compartilhadas (ou não), as dores e os medos sem necessidade que deixamos de sentir. Porque a vida se enche de significados à medida que se esvazia, lentamente, sem pressa, na contramão do relógio. Só temos a ganhar com o tempo, que depois de um tempo se perde. (E perdidos estaremos se não soubermos fazer dele um aliado atemporal.)
Ao final, contam as memórias eternizadas na fugacidade dos momentos. (Atreva-se!)
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INSTANTE NA ESTANTE
O que realmente prendia minha atenção era algo mais amplo e menos convencional – não as campanhas políticas, mas os movimentos sociais, em que as pessoas comuns se uniam para promover mudanças. Passei a estudar os sufragistas, os primeiros sindicalistas, Gandhi, Lech Walesa, o Congresso Nacional Africano. Sobretudo, eu me inspirava nos jovens líderes do movimento pelos direitos civis – não só o Dr. King, mas também John Lewis e Bob Moses, Fannie Lou Hammer e Diane Nash. Em seu trabalho heroico – indo de porta em porta para cadastrar eleitores, sentando ao balcão das lanchonetes, marchando ao som de canções pela liberdade –, eu via a chance de pôr em prática os valores que minha mãe me ensinara: como reunir poder não rebaixando, mas sim elevando os outros. Aquela era a verdadeira democracia em ação – a democracia não como uma concessão oferecida de cima para baixo, não como uma partilha de recompensas entre grupos de interesse, mas como uma conquista, uma obra de todos. O resultado era não só uma mudança nas condições materiais, mas um senso de dignidade para as pessoas e as comunidades, um laço entre aqueles que antes pareciam separados por uma grande distância.
Uma terra prometida – Barack Obama (1961)