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A chave de tudo está no equilíbrio.
A balança que balança demais acaba pendendo para um lado, criando uma realidade de efeitos colaterais delicados, perigosos até. A natureza, com suas reações desequilibradas, é um exemplo, talvez o melhor. Impossível não se sensibilizar com o sofrimento das vítimas de enchentes e estiagens, fenômenos naturais cada vez mais reincidentes e menos naturais. Quer dizer, a natureza apenas reage naturalmente à nossa falta de consciência e sensibilidade.
O lucro, essa máquina de louco, como diz o verso de uma música da banda BaianaSystem, é ponto crucial de desequilíbrio. Não que seja ruim ou errado obter vantagens devidas, afinal todos merecem mais do que simplesmente pagar contas e muitas vezes ainda prescindir do básico. O problema reside na cegueira da ganância, na volúpia do exagero, na ânsia da necessidade fabricada, inventada por capricho. (Sim, parecemos bichos!)
Não cabe apontar culpados, mas refletir.
A fome é algo inadmissível, que beira a insanidade, ainda mais levando-se em conta os números da produção (e do desperdício) de alimentos. A engrenagem desregulada fomenta atrocidades, atordoa, escarnece a massa. Sou da turma de privilegiados que nunca passou por isso, e reconheço que talvez tenha feito pouco ou quase nada para ajudar a mitigar realidade tão cruenta.
O acúmulo indiscriminado de bens e riquezas sem propósito é outra afronta de difícil aceitação. Por favor, não me atirem na vala comum de sistema A versus sistema B. A dualidade perversa desconsidera circunstâncias, irremediavelmente nos afasta. Não temos necessariamente que escolher um lado para semear convicções duras e irrefletidas; nossa capacidade vai (ou deveria ir) além disso.
Repito: não cabe apontar culpados, apenas refletir.
Mudar uma realidade problemática requer um espaço de tempo que pode compreender gerações. Tem menos a ver com conceitos, está mais próximo de atitudes individuais e do desenvolvimento do raciocínio próprio. Sistemas antagônicos na aparência costumam carregar um pouco, às vezes muito do que abominam em seu oposto. Se um mundo mais igualitário não for possível, que pelo menos a desigualdade seja menos gritante.
Insisto: as linhas acima não tratam de verdades absolutas – longe disso!
São reflexões, tentativas de diálogo com algum leitor imaginário ou uma simples ideia lançada ao universo, orbitando, entrementes, entre mentes dispostas. Conceitos podem ser revistos, corroborados ou ignorados, sem carecerem de julgamentos raivosos ou ataques desproporcionais. (Somos o que somos, mas podemos mais.)
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INSTANTE NA ESTANTE
“Seu coração de cinza amassada, que tinha resistido sem fraquejar aos golpes mais certeiros da realidade cotidiana, desmoronou nos primeiros embates da nostalgia. A necessidade de sentir-se triste ia se transformando num vício conforme os anos a devastavam. Humanizou-se na solidão. E ainda assim, na manhã em que entrou na cozinha e encontrou uma xícara de café que um adolescente ósseo e pálido lhe oferecia, com um resplendor alucinado nos olhos, foi lanhada pela garra do ridículo. Não apenas se negou a autorizar, como a partir de então passou a levar a chave da casa na bolsa onde guardava os pessários sem uso. Era uma precaução inútil, porque se quisesse Aureliano teria podido escapar e até voltar para casa sem ser visto. Mas o prolongado cativeiro, a incerteza do mundo, o hábito de obedecer tinham ressecado em seu coração as sementes da rebeldia. Assim, voltou ao claustro, lendo e relendo os pergaminhos, e ouvindo até alta noite os soluços de Fernanda no quarto”.
Cem anos de solidão – Gabriel García Márquez (1927-2014)