Por Alan Caldas – Editor (De Sevilha, Espanha)
As coisas mudam, e aqui na Espanha também “todo cambia”.
Por exemplo:
As primeiras vezes que vim para cá foi lá no início da década de 1980. Era outro mundo. Outra Espanha. E algo que nem mais lembrava que existia me veio à memória hoje cedo, quando, aqui em Sevilha, passei por esse bar de nome Sereno.
“Bahhh ...” – eu pensei – “não existem mais os Serenos...”.
O “Sereno” era uma instituição na noite da Espanha. Os primeiros “Serenos” surgiram em Valência, no distante ano de 1777. Naquele ano, sabe lá Deus por que, as fábricas de fogos de artifício foram proibidas. Sobrou a mão de obra que trabalhava nelas.
As pessoas dos bairros onde os fogueteiros moravam, se compadeceram dos desempregados. E sugeriram que eles fizessem um tipo de “ronda” pelo bairro, avisando de perigos noturnos e despertando pessoas em horários que necessitavam ser acordadas. Em troca, esses homens ganhavam gorjetas, e assim sobreviviam.
Como trabalhavam só a noite, logo apelidaram eles de “sereno”.
Esse favor ao bairro foi atravessando décadas e séculos, e no século 20 o “Sereno” era uma figura típica tal como uma instituição da Espanha. Todo bairro tinha 1, pelo menos.
Eram homens que ficavam na rua durante a noite, das 22 às 5 da manhã, e levavam na cintura um imenso molho de chaves. Eram as chaves das casas.
Os vizinhos conheciam eles e deixavam as chaves para que se alguém da família chegasse na noite, vindo da “movida” ou de visita, ele pudesse abrir para o parente entrar.
O Sereno também usava um apito. Se se ouvia silvar o apito dele, era um aviso de que “algo” anormal estava ocorrendo. E todos logo saiam à porta.
A Espanha sempre teve grande movimento de viajantes, e quando passei a vir aqui, nos anos 80, ainda havia o Sereno.
Naquela época não existia celular, WhatsApp, Facebook, Booking e essas facilidades de hoje. O “pouso”, então, se conseguia batendo palmas para chamar o Sereno.
Você chegava de noite, batia palmas bem alto, e assim, do nada, vinha o Sereno com seu jeitão calmo e sempre meio sonolento.
Ele tinha aquele “molhão” de chaves, e sabia quais casas aceitavam viajantes e qual era o preço pelo pouso, café e banho.
Feito o acerto, ele te levava até o local, abria, te dava a chave e voltava para a ronda. No dia seguinte, se deixava a chave com o proprietário, antes de ir embora.
Era tão útil o Sereno, que as pousadas deixavam tudo com ele.
O pagamento dele não era em salário. Era só na gorjeta. Quem batia palmas na noite chamando o Sereno e usava o serviço dele, dava, sempre, uma boa gorjeta.
Ficar amigo de Sereno era uma forma garantida de conseguir sempre os “melhores pousos” ...
Mas... “todo cambia”.
Veio a modernidade. Veio a Internet. E o Sereno foi sendo superado.
Esse tipo humano tão característico desta linda terra foi sumindo. E 10 ou 15 anos atrás, quando chegou o celular e suas maravilhas de comunicação, os Serenos foram serenamente sumindo na estrada do tempo, até deixar de existir completamente na cena espanhola.
Hoje vi esse bar. O Bar Sereno. Vi os desenhos de chaves. Lembrei o quão útil era esse trabalhador por gorjeta que hoje não existe mais.
Parei. Olhei. Tirei a foto. E quase morri de saudades desse personagem que foi soterrado pela modernidade. Pensei: vou escrever sobre o Sereno.
Escrevi. E agora me dê licença pois vou lá no Bar Sereno, tomar um copinho de jeréz, como fazia antigamente, e bem sereno quero erguer em meu silêncio um brinde ao tanto que vi e vivi nesta vida onde nada é eterno – como bem prova o completo desaparecimento do antigo “Sereno”.
NAS FOTOS
Bar Sereno / Assim eram os Serenos, nos anos 80