Felipe Borba – Delegado de Polícia e Mestre em Direito
Em diversas situações, somos desafiados a nos colocar no lugar dos outros, no chamado exercício de empatia. É prática difícil, por vezes utópica. Tentar se colocar na posição das mulheres vítimas de violência doméstica, apesar de louvável e recomendado, é um desses casos.
A falta de empatia parece fundamentar ideias de que a própria vítima é responsável por sua condição (“problema dela!”) e de que está em suas mãos a capacidade de interromper o ciclo de violência (“ela que lute!”).
É difícil compreender sentimentos e emoções de alguém que sequer tem uma visão clara sobre sua própria situação de vítima. A fragilidade, a vulnerabilidade, o esgotamento psíquico e a sensação de falta de alternativa costumam dominar mulheres que se encontram nas hipóteses da conhecida Lei Maria da Penha.
Nesta semana, conversando com uma profissional da psicologia sobre o assunto, uma questão básica foi abordada: o quão difícil deve ser para uma mulher decidir expor sua situação e buscar auxílio, ainda mais perante um órgão policial.
Realmente. Há quem, nos primeiros episódios, ainda não paralisadas pelo menosprezo e pela humilhação da violência de gênero, registram ocorrência e solicitam medidas protetivas, mas também há muitas mulheres que nunca irão procurar ajuda. Em torno de 80% das mulheres vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul, neste ano, não tinham registro de ocorrência anterior contra o agressor, e quase 90% delas não possuíam medida protetiva em vigor na data do fato.
Antes de julgarmos as vítimas, lembremos de que elas mesmas já se culpam, considerando-se responsáveis pela relação amorosa não andar bem, pelo companheiro andar mais nervoso e agressivo, pela sua sensação de derrota em diferentes áreas da vida. Raramente enxergam no outro a origem do problema, assumindo para si a culpa por todos os seus infortúnios.
Outros fatores também pesam na decisão de buscar apoio: preocupação sobre o julgamento de terceiros; vergonha em expressar a carência por ajuda; medo de que o agressor fique ainda mais violento; receio de que o convívio com os filhos sofra prejuízo; aflição atrelada à sua dependência econômica perante o acusado.
Tudo isso somado à história de vida de cada uma das vítimas, que muitas vezes acham normal a violência masculina, porque foram criadas em ambientes onde agressões físicas e morais também aconteciam com frequência, bem como à cultura discriminatória contra a mulher, que ainda interfere bastante em padrões de comportamento dessa natureza.
Apesar de estar bem estruturada a rede de proteção às mulheres, notadamente no sistema judicial e policial, ainda há muito a fazer para reduzir a cifra oculta, ou seja, os casos que jamais chegam ao conhecimento das autoridades.
É preciso reconhecer o poder das questões psicológicas que atuam como forte empecilho ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. É tempo de avançar na vontade sincera de enfrentar a violência de gênero e, para isso, incrementar os serviços públicos, para que enfrentem também os fatores associados à preservação da saúde mental das vítimas.
A prática policial revela que, dentro do pequeno número de mulheres que nos procuram, muitas desistem das representações ou acusações, retomam relacionamentos opressivos, ou se submetem à violência de novo parceiro. É o ciclo de violência se perpetuando, retroalimentado pela reduzida autoestima das vítimas.
Precisamos avançar na compreensão do fenômeno e identificar medidas mais efetivas.
Na Delegacia de Dois Irmãos, as mulheres recebem atendimento por policial feminina, na Sala das Margaridas, como forma de potencializar a percepção de acolhimento, e nesta semana demos início a projeto para oferecer também atendimento psicológico no local. Se tudo der certo, no ano que vem o serviço estará em operação, a partir de parceria com a Universidade Feevale.
Mais do que desenvolver empatia, é urgente investir na real qualificação do serviço público de proteção às mulheres em situação de vulnerabilidade. Somente neste ano, no nosso estado, para mais de 40 mulheres a oportunidade de lidar com seus sofrimentos, angústias e medos não chegou a tempo: tombaram vítimas de feminicídio.