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Preferência ou inclinação política virou um definidor de caráter, uma espécie de identidade paralela cujo registro serve unicamente para excluir. Qualidades perdem efeito diante de simples menção que penda minimamente para um dos lados desta querela ideológica pobre de qualquer ideologia. Viramos reféns do julgamento antecipado, do crime sem provas, de um comentário despretensioso e manipulável. (Não me diga com quem andas, por favor! Não quero saber!)
Você não é mais você. Você agora é o seu candidato.
Não importa seu histórico de boas ações, não importa sua capacidade profissional, não importam todas as coisas que realmente importam. De uma hora para outra, em meio ao caos da incompreensão e do preconceito, seu valor estará miseravelmente condicionado à sua simpatia por A ou B, ao seu desprezo por C ou D. Aos olhos do espelho maligno do outro, você deixará de ser quem é mesmo sendo o mesmo. (Paciência, a culpa não é sua.)
Você não é mais você. Você agora é o seu candidato.
E tudo vira justificativa plausível, as peças deste quebra-cabeça capenga se encaixam com maestria em cabeças ocas devidamente enfeitadas com antolhos. Aqui e ali ouvem-se relinchos de fúria, bramidos de amargura, exortações disparatadas. Há quem faça do discurso louco razão de ser, há quem racionalmente abuse da loucura para que ninguém atenha-se ao silêncio de suas intenções. (E há também a grande massa ensanduichada.)
Se você não tem candidato, então quem é você?
Nem o direito à neutralidade lhe cabe, pois as pedradas serão duplamente justificadas. Entenda de uma vez por todas: se você disser que não simpatiza com A nem com B, quem for de A vai entender que você prefere B e quem for de B vai entender que você prefere A. Sem esquecer que C e D tampouco servem – servirão apenas para que lhe atirem umas pedras mais. (Ou seja: você tem direito a não ter direito – e não reclame!)
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Se você tem candidato, defenda-o argumentando com respeito e, principalmente, saiba ouvir.
Se ainda assim a boa política não for uma possibilidade, faça como os bons políticos: finja, dissimule. (E por fim exija sigilo de 100 anos.)
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INSTANTE NA ESTANTE
Confrontado com casos de soldados sentenciados à pena de morte por covardia, Lincoln tipicamente reduzia a pena à de prisão ou trabalhos forçados. “Os pobres coitados ficariam apavorados demais, diante de um pelotão de fuzilamento”, disse ele. Um caso envolvia um soldado raso que foi sentenciado à execução por ter desertado, apesar de mais tarde ele ter se realistado. Lincoln simplesmente propôs que o deixassem lutar em vez de fuzilá-lo. Admitiu ao general John Eaton que alguns de seus oficiais acreditavam que ele empregava o poder do perdão “com tanta liberalidade que chegaria a desmoralizar o Exército e destruir a disciplina”. Embora “os oficiais vejam apenas a força da disciplina militar”, explicou, ele tentava compreender cada caso do ponto de vista de cada soldado – um sentinela avançado tão exausto que o “sono o domina sem que ele perceba”, um homem de família que se atrasou para voltar da licença, um rapaz “tomado de um medo físico maior do que sua força de vontade”. Ele gostava de contar a história de um soldado que, quando lhe perguntaram por que fugira, respondeu: “Bem, Capitão, não foi minha culpa. Meu coração é tão valente quanto o de Júlio [César], mas essas minhas pernas sempre fogem me carregando, quando começa o combate”.
Lincoln – Doris Kearns Goodwin (1943)