Delegado Felipe Farias Borba*
No último dia 18, ao participar de ação natalina no município de Dois Irmãos, distribuindo itens doados pelos diversos comerciantes da cidade, paramos em uma casa cheia de crianças, em local afastado do centro. Quando uma menina de cerca de 7 anos se aproximou, questionamos a ela sobre o número que calçava. Respondeu que não sabia. Como estava usando um chinelo, sugerimos que ela espiasse no próprio calçado. Nesse instante, disse a menina: “eu não sei ler números”.
O problema da numeração foi resolvido, pois selecionamos pares para que ela experimentasse. Ocorre que o problema da educação lá permaneceu.
Ser policial não é fácil. Nosso trabalho é de natureza técnica, objeto de rígida e extensa regulamentação. Para exercê-lo, somos treinados e orientados. A complexidade está nas circunstâncias. Não é para qualquer um lidar com o que lidamos, conhecer o que conhecemos. E o Papai Noel sabe disso.
Esses dias, prendemos um foragido da Justiça. Diligenciamos, esperamos o momento mais seguro, e a prisão aconteceu sem emprego de força, com todos os envolvidos preservados. Ocorre que testemunhou a algemação e a condução do sujeito a sua filha, de uns dois anos de idade, no colo da mãe, gritando: “papai, papai, papai...”. O problema da Justiça foi resolvido, mas o problema da estrutura familiar lá permaneceu.
Por vezes, temos que apurar crimes de homicídio. Também estamos preparados. Ocorre que nem sempre as vítimas já ultrapassaram a infância. Na guerra entre facções, os atiradores não costumam verificar quem está debaixo das cobertas. Jamais esquecerei da ocasião em que atendi local de homicídio e, numa das camas, dois irmãos perderam a vida em posição que denotava um abraço. A autoria do delito certamente foi esclarecida. Ocorre que a desesperança lá permaneceu.
Por falar em chinelo, há pouco tempo atendemos caso de maus tratos em que a marca (inclusive do fabricante) ficou nas costas de uma criança de 4 anos, em agressão praticada pela mãe, devidamente indiciada no procedimento policial. O caso foi esclarecido, mas o histórico de violência não se apagará.
Teorias indicam que uma sociedade em que não ocorram crimes é uma sociedade com graves problemas, sustentando que o fenômeno criminal possui relevância para a própria integridade social. Respeitando tais teorias, então, não vamos pedir que não haja crimes.
Neste Natal, vamos pedir ao Papai Noel que proteja as crianças. Se isso for “pedir demais”, que ele ao menos ajude aquela menina a “ler os números”.
Aos leitores, aproveitamos para esclarecer que as botas do “bom velhinho” não possuem numeração. Qualquer um pode calçar e, assim, auxiliar na realização de tantos sonhos e pedidos.
* Titular da Delegacia de Polícia Civil de Dois Irmãos