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Pretendo falar de poesia – não ria!
Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977)
*
A vida precisa de um pouco de poesia, pode até ser fria, servida em prato de plástico ou papelão – não tem problema comer com a mão.
Livros? Quase ninguém compra. Carne? Com a inflação do jeito que anda, quase ninguém compra também. As fomes persistem, insaciáveis, engolidas pela insensatez, misturadas com a farinha do desprezo – Salve Jards Macalé! (E a ralé que se rale!)
Barriga vazia também é falta de cultura, de educação, de sentimento. Alguém ainda se importa com o que o outro carrega por dentro?
O choro é livre, mas há quem não tenha mais lágrima para verter, apenas sangue.
Nem só de pão vive o homem, mas que adianta a palavra sem gosto, sem rosto, sem nome?
Vive das sobras quem sempre sobrou, quem se acostumou a ser visto sem nunca de fato ser notado. Resto de amor ajuda, mas não nutre como deveria. Um pedaço de perdão atenua a culpa, mas ainda é muito pouco. (Louco, eu? Deixe de histeria!)
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Os versos da abertura estão no livro 50 poemas de revolta (Companhia das Letras), uma reunião de 34 poetas brasileiros – clássicos e contemporâneos.
Carolina Maria de Jesus viveu as agruras da miséria, foi catadora de papel, travou a batalha inglória contra a fome para alimentar os três filhos, tudo isso como mulher negra no Brasil que a gente conhece. Apesar dos seus dois anos de escolaridade, era leitora voraz e alcançou notoriedade com o livro Quarto de despejo: Diário de uma favelada, publicado em 1960 e traduzido em 13 idiomas.
– Quando cheguei em casa eram 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei a comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Eu gosto de manusear um livro. O livro é a maior invenção do homem – escreveu ela numa das páginas do seu diário.
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Livros, poemas e sonhos são para todos.
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INSTANTE NA ESTANTE
Numa assembleia de fantasmas, como a que descrevi, era de supor que tal agitação não seria causada por aparição vulgar. Na realidade, a licença carnavalesca da noite fora praticamente ilimitada, mas o novo mascarado excedia em extravagância ao próprio Herodes; ultrapassava, inclusive, os indecisos limites de decoro impostos pelo príncipe. Há fibras no coração dos mais levianos que não podem ser tocadas impunemente. Mesmo para os pervertidos, para quem vida e morte são brinquedos igualmente frívolos, há assuntos sobre os quais não se admitem brincadeiras. Todos os presentes pareciam se dar conta de que, nos trajes e nas atitudes do estranho, nada havia de espirituoso ou de conveniente. Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não aprovado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra. Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates.
Histórias extraordinárias – Edgar Allan Poe (1809-1849)
* Trecho do conto A máscara da morte rubra