pitter@jornaldoisirmaos.com.br
Na contramão de todos os avanços, emburrecemos, embrutecemos, empobrecemos.
É fato: mesmo tendo mais, viramos menos. Desconfio que vivemos um tempo das cavernas contemporâneo, com a diferença de que nossos antepassados não tinham ferramenta (conhecimento) para além do tacape. A evolução vertiginosa das últimas décadas nos fez involuir na mesma proporção em termos de comportamento. Por óbvio, não convém generalizar, mas a rudimentariedade de alguns de nossos semelhantes parece irreversível, um sopro nefasto vindo das profundezas. (Para onde correr?)
Ao invés de amar, muitos preferem se armar. Ao invés de respeitar, muitos preferem ferir, agredir. Ao invés de ouvir, muitos preferem gritar, ameaçar.
Às vezes me pergunto se o futuro tem futuro ou se será apenas um passado reprisado no presente. Volta e meia a vida se repete, fantasmas (quase) esquecidos emergem em rasantes intempestivos, provocando ânsias e calafrios.
O tempo dirá se sobreviveremos a tudo isso, porém é inevitável haver cura sem uma parcela generosa de padecimento. O comedimento – que tanta falta nos faz – poderia abreviar a dor e o lamento, mas quem mentiu que estamos preparados para compreender, para contemporizar?
A sanha nos tornou impassíveis.
A intolerância nos fez perder desenvoltura.
O ressentimento nos acovardou.
Aparentemente, alguns ganham.
Necessariamente, todos perdem.
*
Repito, insisto:
Vivemos um período estranho, muito estranho, avesso a qualquer tipo de contemporização.
Não sabemos no que acreditar, muito menos em quem confiar. Nunca dantes (na história deste planeta) visões de mundo – inclusive entre pessoas próximas e que se querem bem – foram tão antagônicas, estiveram tão distantes. Travamos uma guerra dissimulada de opiniões que se creem necessárias mesmo que ultrajantes e insustentáveis.
Quem tem razão? Ou melhor: alguém tem razão? A razão, coitada, anda enfastiada com tantos por aí que se dizem seu dono. Há quem considere que ela nem tenha mais razão para existir; perdeu sentido. E na esteira das valências perdidas, o contraponto virou ofensa grave, gerador de reações desmedidas, provocador de úlceras cerebrais.
Conclui-se, nestes casos, que a concordância plácida talvez seja a melhor (e única) saída. (Burros não podem ter outro fim se não como burros.)
*
A propósito:
Venho especulando acabar com alguns filtros e dizer mais seguidamente o que eu penso, inclusive aos mais chegados. Não é porque não suporto certas manias e comportamentos de pessoas do meu círculo umbilical que vou deixar de gostar de quem eu gosto. As amizades, mais até do que os amores, deveriam admitir e permitir a sinceridade sincera, sem disfarces. (Deveríamos entender que, além de burra, a unanimidade é insossa.)
O problema é: estamos preparados para a sinceridade alheia, para as recriminações sutis às nossas manias e comportamentos?
(Pensando bem, melhor seguir filtrando.)
***
– Por que insistes em ser tão desnecessário? Ei, estou falando com você!
Impassível, o espelho se nega a responder.
*
INSTANTE NA ESTANTE
Podem vir, sem problemas, nos arrancar daqui a tiros. Podem soltar os cachorros. Quem será tão idiota a ponto de gastar seu tempo sentindo medo? Dispare, dispare logo de uma vez sua pistola, canalhinha do cartaz: pode me matar, mas sou eterno. Esta rocha me ama. Esta garota me ama. Esta praia me ama. Este céu, este vento, estas gaivotas, estes cascalhos. Deus! Bendito seja, e bendita seja tua Criação, pelos séculos dos séculos, amém. E bendita seja tua lei do amor.
Não espere que eu conte o que conversamos com a rocha, pois não sei. Mas tenho certeza de que nós dois aprendemos segredos da vida que, depois, foram aflorando aos poucos, nos momentos de necessidade. Nisso consiste o verdadeiro aprendizado. Não saber que se sabe, e de repente saber.
O final da história não vale a pena. De repente, a comunicação foi cortada. Fome, frio, noite, viagem interminável. Ela completou seu céu com o rosto para o vento e eu o meu nessas rochas, e voltamos em silêncio. Não lembro se ela foi para a minha casa, nem, se foi, o que aconteceu com seus peitos. Talvez tenha descido naquela praça. Não sei. Não importa.
O romance luminoso – Mario Levrero (1940-2004)