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– Fique, não vá. Só por hoje.
– Amanhã, quem sabe.
– Amanhã é muito longe, pode até ser uma impossibilidade.
– Hoje não posso.
– Faça um esforço.
– Não sei se quero.
– Percebo desejo nos seus olhos.
– Eles costumam mentir.
– ‘Espelhos da alma’, não é o que dizem?
– A vida real é diferente.
– Quem ainda sabe o que é real?
– Nisso você tem razão.
– Sobre seus olhos também.
– Não insista!
– Perdão, mas é o que eu sinto.
– Certos sentimentos são confusos e desnecessários, além de ambíguos e inimigos do bom senso.
– Por que tamanha resistência?
– A resistência é o último reduto da sanidade.
– E a insistência pode ser a única forma de sobreviver.
– Ou uma das tantas possibilidades de morte.
– É uma ameaça?
– Não sei, leia meus olhos.
***
– Ainda bem que tédio não mata.
– Quem disse que não?
– Você por acaso já leu TÉDIO em algum atestado de óbito?
– Só em atestado de burrice!
– O que disse?
– Nada. O que eu quero dizer é que o tédio é uma das tantas causas implícitas de morte, uma infecção silenciosa, sorrateira, que causa falências múltiplas. Quando generalizado, leva ao definhamento e a outras complicações. Amorfos, inertes, sucumbimos à paralisia da displicência. Quando nos damos conta, estamos soterrados.
– Entendo, porém discordo. O problema não é o tédio em si, mas suas decorrências. Estamos acostumados a aceitá-lo por comodismo, mesmo tendo à disposição inúmeras formas de subvertê-lo. O cerne da problemática está em nossa ambição cada vez mais limitada ao plano material, presos que estamos às frivolidades das próprias intenções.
– Por esse ângulo, parece-me razoável. Devo confessar, aliás, que de início subestimei sua capacidade discursiva e agora experimento uma leve sensação de regozijo. Eis que até meu tédio começa a definhar! Aceita um café?
***
– Conhece o sujeito?
– Aquele ali é macaco velho, cobra criada.
– Notei. Deu uma de amigo da onça e passou batom no porco.
– Sem falar no bode!
– Que bode?
– O expiatório, que ficou na sala.
– Nem lembrava.
– Aí eu pergunto: quem vai pagar o pato?
– Já paguei mico. Pato, não pago!
– Pior de tudo é que dias atrás acabei comprando gato por lebre.
– Sei como é, quem não tem cão...
– Melhor nem sair para caçar!
– Tem razão. Mais vale um na mão do que dois... Como é mesmo o ditado?
– Não lembro. Melhor deixar cada um no seu galho. Até mais!
– Abraço.
– De urso?
*
INSTANTE NA ESTANTE
Ao final de um dia na rua não havia nada que machucasse Stephen mais do que a consciência de que sua mulher estaria sentada no escuro, de como ela mal se mexeria para assinalar seu retorno, e de como ele não possuiria nem a disposição nem a engenhosidade capazes de romper seu silêncio. Suspeitava – e viu depois que tinha razão – que ela considerava seus esforços uma evasão tipicamente masculina, uma tentativa de ocultar os sentimentos sob manifestações de competência, organização e esforço físico. A perda os levara aos extremos de suas personalidades. Tinham descoberto um grau de intolerância mútua que a tristeza e o choque tornavam insuperável. Não suportavam mais comer juntos. Ele comia sanduíches, de pé nas lanchonetes, ansioso para não perder tempo, relutante em se sentar e escutar seus pensamentos. Tanto quanto sabia, ela não comia nada. No começo, ele havia trazido pão e queijo, que, no correr dos dias, desenvolviam tranquilamente seus próprios mofos na cozinha jamais visitada. Uma refeição conjunta teria implicado o reconhecimento e a aceitação da família diminuída.
A criança no tempo – Ian McEwan (1948)