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Quantas verdades existem?
Quantas mentiras escondem uma verdade?
Quantas verdades parecem mentira?
Quantas mentiras parecem verdade?
Quantas verdades cabem em uma mentira?
Minto porque sinto que já não reconheço o que é verdadeiro. Somos donos de muitas verdades, e um dia, talvez, no suspiro derradeiro, eu tenha um vislumbre de algo que seja no mínimo coerente. A realidade presente anda dificultosa, insolente, temerária aos dentes e à sanidade mental. Além de mentir, é preciso fingir com decorosa piedade, sendo prestimoso a quem não mereceria um fiapo de misericórdia.
A bem da verdade, a mentira também serve de atalho para evitar contratempos. Lamento admitir, mas certas verdades, mesmo sendo difíceis de engolir, não compensam o desgaste do contraponto – melhor dar um ponto final, de pronto, e deixar a impressão da vitória triunfar no vácuo do intelecto oposto. Vaidade e estupidez ostentam uma intimidade intimidante, um coito presumido que não convém ser assistido.
A bem da verdade, não sei se minto ou se estou perdido, procurando o que eu nem sei se quero. Espero encontrar algum sentido para tudo isso, sem compromisso, apenas pelo prazer de ter tentado. As tentações são muitas, assim como as verdades, e não há razão para não experimentar, desde que se saiba a hora de parar. (Eis uma de tantas mentiras bem contadas, como se pudéssemos controlar as próprias vontades. Tenha dó!)
A bem da verdade, a verdade não passa de uma mentira.
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Não lembro se o trecho acima foi escrito num momento de sincero desconsolo ou falso desprendimento. Fato é que se eu disser que ando apenas ressabiado, minto: tenho não um, mas os dois pés bem atrás.
Talvez o mundo seja o que sempre foi, repetição de erros e acertos, circunvoluções que atravessam os tempos, novos jeitos de dizer o mesmo, ainda que sob o verniz de novidade. Pode ser.
Sei também que a discussão é ampla e meu conceito, meio generalizado. E não desconsidero o que evoluímos, mas me assusto com tantos passos atrás no discurso de uns e outros, tanto carinho pelo ódio, tanta gasolina num matagal já em chamas.
A chuva de bom senso é rala.
Vivemos seca preocupante no campo do discernimento e da empatia. Tamanha gritaria prejudicou nosso aparelho auditivo e, principalmente, o já frágil sistema afetivo. Polarizamos a própria consciência, elegemos palavras descuidadas para impor uma presença desnecessária. A maioria nem se dá conta do desvario porque simplesmente reproduz um ambiente, uma teoria enlatada qualquer. (E depois não entende a pressão alta!)
Cuidado, meu jovem ancião!
Tenha em mente que a mentira gosta de se fantasiar de verdade e que a verdade pode ser questão de ponto de vista e conveniência. Convém aguçar os sentidos para não acabar se ressentindo das escolhas feitas. Pode parecer, mas não falo de política. A política da vida por si só já absorve – ou pelo menos deveria absorver – a maior parte de nossa energia.
Portanto, pense bem antes de sair por aí espalhando suas verdades e mentiras.
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INSTANTE NA ESTANTE
Um dia, fui tomada pelo absurdo de pensar que minha mãe perambulava com Simone de Beauvoir pelo subúrbio do Rio, sem que ninguém da família estivesse presente. Num misto de curiosidade, culpa e carência, rumei para o Sesc Nova Iguaçu. As luzes do teatro se apagaram e eu a vi entrar em cena, sentar numa cadeira – da qual não se levantou até o fim do espetáculo – e dimensionar esse conceito de Sartre sobre a liberdade e o acaso.
Chorei. Chorei por tudo, pela profundidade de artista que é minha mãe, pela obstinação profissional dela, pela falta que o meu pai me faz e pelo choque com a clarividência cruel, pausada e seca com que a mulher que me criou emitia aquelas palavras.
Nós conversamos inúmeras vezes sobre a alegria e o desespero de estar vivo, mas eu jamais a vira falar da plenitude da escolha e da aceitação do sofrimento de maneira tão pragmática.
De vez em quando, filho leva o susto de ver a mãe, alguém tão embolado com ele, existindo lá, nela, com as dores e as alegrias que lhe pertencem.
Voltamos juntas no carro, eu e minha mãe de sempre; a outra escondida em algum lugar.
Sete anos: Crônicas – Fernanda Torres (1965)
Trecho de Acaso