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Motivos para amargura, Seu Venâncio tinha de sobra. A vida não costumava lhe sorrir, e quando o fazia geralmente era com deboche ou ironia. Apesar das provações, nunca se deixou vergar nem se fazia digno de pena. Soube, desde cedo, encarar o mundo sem floreios, como ele é: muito bom para poucos, bom para alguns e injusto com a maioria. Preferia a dor à ilusão da esperança, aquela que, mesmo sendo a última, também morre.
Pele cozida, esturricada, olhos tristemente alegres, disfarçando uma serenidade até certo ponto malévola. Cabelo grisalho, bigode fino pintado de preto e mãos sulcadas pela estiagem do tempo. O corpo levemente curvado ainda era forte, e com sorte suportaria os anos que lhe restavam. Não tinha pressa de morrer, tão pouco de viver. A experiência acumulada lhe ensinara que somente a noção do tempo é variável – ele nunca será!
Trazia na alma a sensibilidade dos corações solitários, a placidez dos amantes resignados, a quietude dos rejeitados. Dizia que amores servem para serem perdidos, lamentados, pouco vividos. Histórias que deixam de acontecer carregam o mel e o fel da imaginação, garantem um mínimo de significado a muitas vidas opacas. Não são poucos os que vivem do que poderia ter sido, de reminiscências compartilhadas ou afanadas de outros.
– Seu Venâncio, o senhor acredita no amor?
– Acredito, mas não recomendo.
***
Um escritor nada mais é que um ladrão – dos outros e principalmente de si próprio. Um mequetrefe que rouba fisionomias, comportamentos, trejeitos, sem dar chance de defesa, sem ao menos se deixar notar. E o pior: todos – ou quase todos – nunca perceberão que foram surrupiados, expostos em suas dores e intimidades. Alguns, inclusive, vangloriarão o sujeito por sua sensibilidade indevida, pela semelhança que está longe de ser coincidência.
EMBUSTEIROS, é isso o que somos.
– Como assim, ‘é isso o que somos’?
– Nós, os escritores.
– Não me faça rir, meu caro. Temos uma distância astronômica a nos separar. Além do mais, embusteiros são os que se pretendem escritores.
– Pois sua empáfia diz muito sobre o tipo de escritor que és – ou que não és.
– Ora, não confunda a SUA empáfia com o MEU discernimento. A realidade dos fatos é imutável, negar-se a vê-la apenas corrobora minha impressão a seu respeito.
– Vejo que, além de embusteiros, somos autofágicos.
– Estás falando comigo?
– Não! Comigo. Somos a mesma pessoa, idiota! (A vírgula é opcional.)
***
– Seu Venâncio, o que o senhor fará quando eles forem embora?
– ‘Eles’, quem, meu jovem?
– Os seus medos.
– Nem brinque com uma coisa dessas!
*
INSTANTE NA ESTANTE
Participamos de uma singular dança de máscaras sobrepostas, atrás das quais somos o objeto de nossa própria inquietação. Nem vítimas nem totalmente senhores, cada momento de cada dia um desafio.
Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta. Nos faz humanos.
No prazo de minha existência completarei o projeto que me foi proposto, aos poucos tomando conta dessa tela e do pincel.
Nos primeiros anos quase tudo foi obra do ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação.
Logo não terei mais desculpa dos outros: pai e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condição humana que só quando adultos reconhecemos. Por fim havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer.
E eu... e eu?
Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que nos geraram e criaram; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança.
Perdas & Ganhos – Lya Luft (1938-2021)