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O mundo é plural, mas muitos só aprendem a conjugá-lo na primeira pessoa do singular.
Mesmo o pretérito sendo imperfeito, o futuro do pretérito pode ser diferente, pode ter outro propósito, ainda que o verbo seja irregular. Convém regular a própria conjugação para que sufixos desastrados e inconvenientes não terminem por asfixiar a palavra, o sentimento, tudo aquilo que nos torna compreensíveis na medida necessária ou do possível.
Possivelmente, vez ou outra eu também me equivoque, abarcando a solidão da minha primeira pessoa, cedendo ao desejo imperativo que nunca contempla o particípio. A tentativa não passa do gerúndio e a culpa eu deixo/transfiro para uma segunda ou terceira pessoa – do singular ou plural, você escolhe!
Por fim, lamento-me na ênclise, me afasto na próclise e, se pudesse, dar-me-ia o direito de enfiar-lhe a mesóclise onde bem entendesse.
– Fui claro?
– Claro (que não!).
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E para o vírus da imbecilidade, alguma vacina em vista?
Por favor, não vista a carapuça... Idiotas todos somos em algum momento da vida. Imperdoável é persistir no atraso e deixar-se levar pela esquizofrenia alheia. Elementos de ponderação são facilmente encontrados com um pouco de boa vontade, basta partir do princípio de que verdades únicas servem unicamente para confundir. (Não aposte, duvide.)
Aliás, uma vacina eficaz contra o vírus da imbecilidade ainda pode ser algo distante, mas já existem testes com pílulas diárias de leitura que amenizam os sintomas mais graves. (Experimente sem receio.)
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Somos estranhos, criaturas instáveis e inconfiáveis.
Às vezes, uma música nos emociona.
Às vezes, um descuido alheio, sem intenção, expõe a nossa irascibilidade sem sentido, travestindo-nos de boçais inconsequentes e deprimentes.
Às vezes, um afago, uma pequena lembrança nos inunda com boas intenções e esperanças possíveis neste mundo afeito a impossibilidades.
Às vezes, alguém nos faz chorar.
Às vezes, fazemos alguém chorar.
Às vezes, o mundo não parece tão ruim.
Às vezes, parece que o mal não tem fim.
Às vezes, é só uma dor no rim.
Às vezes, o aperto no peito é de saudade.
A propósito, qual a melhor idade?
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Enquanto a arte não for essencial, todo o resto será em vão.
Mesmo a poesia suja purifica, mesmo o texto leve tem peso incomensurável.
A dor não deixará de existir, mas pode ser que não persista e até desista. Amar ou se armar é questão de ponto de vista, da distância que nos separa principalmente de nós mesmos.
Procurar o amor no outro é caso perdido, pois o amor do outro só existirá a partir do amor que alimentamos no espaço único da própria identidade. (E amar sem amor é temeridade!)
Enquanto a arte não for sim, todo o resto será não.
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INSTANTE NA ESTANTE
A proteção que meu pai dava, deu e dará não se abalaria com a minha recusa em ajuda-lo, ele era incapaz de me desviar. Minha mãe, eu sei, ela sentia que o marido ia morrer e para isso ele adoeceria, sua cumplicidade testada na zona extrema. Ao menos se o processo fosse adiantado para viver de supetão o luto dos acidentes, mas não, meu pai era prevenido, ia ser longo. Se eu quisesse falar com ela, diria para relaxar e soltar o marido à noite, e se soltar também, ia cada um comer seu nhoque em outra companhia, nem penso em cama, conversa alongada com sexo oposto, uma libido de talheres.
Celso ligou, voz de quem sorria escancarado, liberto. Novidades? Você é minha, Cecília. Ele não começava bem, detesto essa posse, que não é posse, é pólvora molhada. Esquece meu consultório, não tem mais surpresa, nem necessidade, vá para minha casa. Estou em todos os cantos, ele disse. Estranhei o transbordamento, nada impedia que estivesse subindo um degrau no afeto por mim, uma mulher que detesta criança foi ter carinho por seu filho, sinal de que eu estava amarrada até com sua continuidade.
A pediatra – Andréa del Fuego (1975)