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A história, coitada, se encarregará de estabelecer a verdade. Qual delas?
Ainda é cedo para especular.
Com tantas crises a nos fustigar, as de confiança e de identidade estão entre as mais perniciosas no chamado longo prazo, sem falar em sua intrínseca relação. Se eu não sei nem quem sou, como saber em quem confiar? A verdade pode ser plural, meu camarada, mas pluralizar a verdade pode ser fatal, um passo (em falso) na direção oposta. (Quem atira para todos os lados acaba matando sem querer ou sem se importar – o que é pior.)
Se o acesso à informação é quase ilimitado, o acesso à desinformação encontra proporção idêntica. Se neste mar revolto de tamanha gritaria fica difícil se entender, imagina entender o que quer que seja e ainda ter capacidade para diferenciar meias verdades ou verdades difusas de mentiras verdadeiramente convincentes. (E nem adianta apelar ao Google Tradutor, pois nosso maior problema continua sendo interpretação de texto.)
Mais do que expor, queremos impor.
A regra é clara: ninguém recua!
Falta-nos uma compreensão de lógica: se eu der um passo atrás, a agressão do outro não me alcança, cai no espaço vazio da própria mediocridade. Não significa se omitir e deixar passar; significa contornar e jogar luz sobre a diversidade de pensamento. Somos todos iguais por sermos diferentes. Respeito e lucidez são bons equalizadores, mas, como toda matéria-prima no auge da pandemia, andam em falta no mercado da consciência.
Ainda não sei onde isso vai dar, mas incendiários não faltam.
(Até parece que a gasolina está barata!)
Aberrações não deixaram de ser aberrações, a diferença é que hoje em dia encontram justificativa até quando não se justificam. Inverte-se a ordem: o injustificável transforma-se em perigosa verdade gregária compartilhada e consentida, chegando ao cúmulo de ser endeusada como virtude. Aliás, verdade e virtude viraram conceitos dúbios, perderam sentido. (Há quem os manipule com verdadeiro virtuosismo.)
Eu sei, a tentação é grande. Todos estão sujeitos a agarrar-se às próprias convicções, principalmente quando encontram eco entre seus pares. Não custa, porém, vez em quando ampliar o horizonte da compreensão. Assim como você, o outro pode ter a melhor das intenções... Ou não. (E caberá à história, coitada, estabelecer a verdade. Qual delas? Não faz pergunta difícil, pô!)
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INSTANTE NA ESTANTE
“A repetição, gesto humano onde quer que haja humanos, é um gesto que eu gostaria de analisar, estudar a fundo, para modificar as conclusões a que outros chegaram. Será que conseguimos fazer alguma coisa nessa vida que não seja a repetição de algo já previamente ensaiado e realizado por aqueles que nos precederam? No fundo, a repetição é um tema tão incomensurável que pode tornar ridícula qualquer tentativa de captá-lo plenamente. Além disso, receio que o tema da repetição possa abrigar algo muito inquietante em sua própria natureza. Mas com certeza pesquisá-la tem um lado interessante, porque, para começar, ela pode ser vista como algo que se projeta sobre o futuro. Esse lado atraente da repetição foi visto por Kierkegaard quando disse que ela e a lembrança eram o mesmo movimento, mas em sentidos opostos, “já que aquilo que se lembra se repete retrocedendo, ao passo que a repetição propriamente dita se lembra avançando. Por isso a repetição, se é que ela é possível, faz o homem feliz, enquanto a lembrança o faz infeliz.”
Mac e seu contratempo – Enrique Vila-Matas (1948)