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O que seria de nós, não fosse a pandemia? Seríamos pessoas melhores ou piores? Estaríamos mortos ou ainda vivos? Mais inteligentes e menos boçais ou menos tolerantes e mais idiotizados? Não sei. Não faço ideia. Mas cabe especular.
Para uns, a tragédia coletiva pode ter significado menos riscos, um freio necessário na rotina destrambelhada parida pela falsa noção de falta de tempo. A cotação do momento presente subiu como nunca na bolsa de valores relegados ou simplesmente esquecidos por conta de urgências que pouco importam. Obrigamo-nos a desviar o olhar para o lado, para dentro do outro e de si mesmos, para não acabarmos entubados pelo egoísmo.
Para outros, pode não ter significado muita coisa, seja porque não compreendem, seja porque ignoram a relevância do que está em jogo. Continuamos vivendo no limite do bom senso, da bravata, do anacronismo. Perdemos escrúpulos como se fossem moedas de centavos que escapam pelo bolso furado da falta de compaixão e da indiferença. Preferimos apagar a luz e fechar os olhos, para ver se assim tudo acaba mais depressa. Se a situação ainda pode piorar? Não sei. Não faço ideia. Nem cabe especular.
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Me sobe um arrepio quando penso no bando de gente ruim que tem por aí. Ainda assim, a quantidade de gente boa e muito boa é infinitamente maior. O mal parece mais vistoso porque o que é bom carece de propaganda, se autossustenta. A velha máxima de fazer o bem sem olhar a quem traduz com simplicidade o efeito da bondade em almas capazes de compreender o significado da palavra doação.
Algumas pessoas nos transformam positivamente apenas porque existem. Boas almas se bastam e bastam para que sentimentos purificadores nos invadam quando da sua presença. O olhar, o gesto, o jeito de falar, o silêncio que preenche vazios, tudo carrega um magnetismo indecifrável em quem nos faz bem mesmo sem fazer ideia.
(Eis o grande mistério: nunca saberemos o tamanho real da nossa presença na vida do outro.)
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Se desconhecemos muitas das enrascadas em que pessoas próximas estão metidas, como ousamos julgar o comportamento de quem é distante? Todos, sem exceção, carregam dores e amores escondidos, que nem a força de uma intimidade é capaz de revelar. Muito do que é íntimo, extremamente pessoal, intimida e fere mesmo sem querer, por isso a reserva quanto a determinados assuntos que deveriam ser compartilhados.
A complexidade da mente humana destoa da nossa imagem de seres racionais. Apesar da capacidade de pensar e interagir, partes (intrincadas) de nós encontram respostas apenas no instinto, na reação sem moderadores. Temos muitas sombras a nos perseguir e a ocupar os espaços que deixamos de preencher por receio ou inanição. O autoconhecimento é um passo importante e necessário, mas não definitivo. (Convém ao menos experimentar.)
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INSTANTE NA ESTANTE
Para escutar os outros em ambiente digital evite, portanto, aceleração da resposta. Evite interpretar a não resposta como recusa. Evite identificar o que o outro realmente pensa e quer com o que ele diz no anonimato e no palco digital. Clínicos experientes têm recomendado sumariamente: nunca tome uma decisão importante tão só por um diálogo digital, do tipo começar ou terminar uma relação, sair ou entrar em um emprego, decidir uma viagem ou uma mudança importante na sua vida. Em um diálogo digital é muito mais difícil de saber o nível de “seriedade” do que está sendo dito. Ele nos abre para um nível de inconsequência com a palavra que não tem correlato no mundo real.
Aplique a tudo que é dito em ambiente digital uma espécie de efeito de deflação narcísica. Imagine que ao vivo o tom não seria esse, a força de enunciação não estaria parasitada por um “nós” imaginário e seu palco de fantasia que transforma declarações íntimas em discurso de Estado. Essa deflação narcísica envolve reduzir permanentemente o nível de conclusividade e de confiabilidade do que é dito digitalmente.
O palhaço e o psicanalista – Christian Dunker e Cláudio Thebas