Por Alan Caldas – Editor
A minha família paterna foi devastada pela tuberculose, em Alagoas, onde nasceu meu pai. Chamavam essa doença de tísica pulmonar. Também era apelidada de Peste Branca. Ou, ainda, Doença do Peito. Foi a primeira peste da qual tive notícia.
Já se conhecia medicamente a tuberculose como doença. Foi em 1882 que Heinrich Hermann Robert Koch descreveu o bacilo, que se tornaria, desde então, o Bacilo de Koch. Mas a saúde pública da época não alcançava a população no nordeste brasileiro, pela precariedade do sistema público.
Não havia essa maravilha que é o nosso SUS, hoje. E, assim, tristemente e escarrando sangue, meu avô faleceu aos 42 anos, quando meu pai tinha apenas 8 de idade. Minha avó, coitadinha, partiria aos 39 anos, apenas 8 meses após a despedida do meu avô. E não foram os únicos. Meus bisavôs morreram também disso. Tios avôs, tias avós, primos e primas de meu pai, muitos deles igualmente vieram a óbito, precocemente. A família foi atomizada, e acabou um filho para lá, outro para cá, colocados “onde dava”. Meu pai, por exemplo, com 8 anos acabou sendo interno em um orfanato de freiras, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia.
Diferente do que parece, hoje, visto à distância, a tísica não arrebatou só famosos, como nosso adorado poeta Castro Alves. Naqueles dias de sangue, a foice da morte ceifou vidas de todas as estirpes, altura, idade e raça, sem dó nem piedade.
Cresci ouvindo histórias da peste naquele período obscuro. Ainda criança, sentava com meu pai na varanda da casa e podia sentir, indiretamente, o medo, o rancor, os abandonos, as perdas e a sensação de flutuar numa vida sem amanhã, que se apossou de todos nos anos daquela doença. Já a conheciam, quando ela atacou furiosamente. No dia 24 de março de 1882, quase 50 anos antes, o médico alemão Robert Koch anunciava a identificação do bacilo causador da tuberculose. Mas a cura demoraria, como demora essa da Covid-19, e enquanto ela não vinha a morte ia se arreganhando.
Houve um realinhamento social, naquele período. Pessoas que tinham certa posição social e cultura elevada perderam o garbo e, diante da tísica, viraram retirantes. Partiam para onde desse, indo na esperança vã de um mês a mais, talvez um ano, quem sabe, a mais, na curta vida que todos percebiam ter devido à Peste Branca, cujo contágio ou não-contágio, requeria cuidados extremos de higiene, isolamento e alimentação. E qualquer semelhança não é mera coincidência.
Hoje me deparo com algo semelhante. A morte rondando silenciosa e invisível, de novo. Não é a morte pairando sobre os guerreiros nas guerras que travamos e onde, bem ou mal, podemos morrer com alguma honra. Não. Não é isso. É a morte, simplesmente, a morte como um malefício invisível que entra nos corpos e causa novamente seu grande estrago.
Olho ao meu redor diante da Covid-19 e me pergunto: por quê? Mas não há resposta. Assim como não havia na Peste Branca, também não há agora. Matou antes, indiscriminadamente. E matará agora. E desta vez não há localização, como naquela época, onde era um lugar aqui, outro ali no nosso país. Agora é mundial. É pandêmico, uma pandemia, como aprendeu rapidamente o mais simples do povo.
E, pior, é anunciado. Todos sabem de (quase) tudo em todos os lugares, devido às comunicações, que evoluíram mais até do que podemos suportar de informações. Não vivi na pele a colheita que a morte fez nas décadas da tuberculose. E agradeço. Só conheci aquela colheita pelas palavras e gestos do meu pai e poucos tios que sobraram. Mas vivo agora a sensação de ter o invisível tenebroso me olhando como um precipício olha quem está a um passo dele.
O medo flagela a alma e o flagelo da alma é a morte. Por isso, não me visto de medo nem rancor. Apenas observo. Só observo. Sigo o conselho de Cristo: orai e vigiai. A vida é atraente porque tem princípio, meio e fim. E nunca se sabe o fim. Há um destino? Ou nada está traçado? Não se sabe. Portanto, não adianta histeria. Mas é impossível ficar impassível diante da situação que não é apenas sanitária, pois extrapolou e se tornou econômica, financeira, social e cultural.
Existe, agora, mais mal-estar na cultura do que havia meses atrás. E não sabemos “qual” sociedade emergirá nem tampouco “qual” Poder se erguerá entre nós, humanos e frágeis, no após Covid-19. Se a economia se decompor numa dízima tipo Arco & Flecha, que é o que está parecendo, o que se levantará ali na frente só Deus sabe.
No pós-guerra mundial, em 1945, os senhores da vida e da morte disseram que após aqueles 50 milhões de mortes teríamos, finalmente, no planeta, “meio século de progresso e paz”. A guerra foi um negócio e uma reorganização social. Penso nisso, às vezes. Só às vezes. Bem poucas vezes. Mas penso, porque não tenho como não pensar.
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SOBRE A IMAGEM
“La miséria” (1886) / Pintura de Cristóbal Rojas (1857–1890)
Galeria de Arte Nacional, Caracas – Venezuela