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Vai passar, mas não passa. Quando passar, talvez muitos já tenham passado.
Pode ou não pode? Abre ou fecha?
Depende. Se for a boca, feche.
Se for a cabeça, abra. Ventilar é preciso.
O corpo é nossa primeira casa e a cabeça, uma janela. Nem sempre quem grita contra o que parece errado está certo. Às vezes, há mais acertos num erro e o que é certo, ou parece certo, não passa de equívoco.
Equivocai-vos, pois!
Só quem erra tem permissão para acertar, mas erros repetidos...
*
– Escuta aqui: vai limpar o banheiro quando for tomar banho?
– Oi?
– Esqueceu? Tua vez de limpar o banheiro.
Minha mulher é uma insensível, interrompe meus rompantes literários com questões domésticas, comezinhas. Mas, como tenho me repetido em erros primários, melhor deixar de lado as palavras e pegar no rodo antes que eu rode. Até qualquer hora...
*
(30 minutos depois)
Alarme falso.
Escapei do banheiro, mas tive que passar aspirador na casa. Faz parte, é a parte que me cabe. Divisão das tarefas domésticas, eis o ápice da civilização.
Aliás, aspirar a uma vida simples talvez seja a melhor das inspirações. A pandemia está aí, entre outras coisas, para defenestrar certas manias descendentes de desejos dispensáveis que muitas vezes nem são nossos. Quantos de nós tentam ser o que os outros desejam?
Vontade própria anda em falta no mercado, nem tanto por conta da demanda, mais por preguiça de pensar ou de assumir o que realmente se pensa. Os bombardeios incessantes de ideias prontas levam muita gente a duvidar das próprias escolhas. Há quem prefira calar e deixar que outros pensem por eles ou que pensem o que bem entenderem a seu respeito, a despeito de qualquer ignomínia.
Eu sei, é errado.
Prostrar-se não me parece a saída mais indicada, mas como reagir à ignorância sem ser ignorante? Há casos irremediáveis de cabeças hermeticamente sufocadas e sufocantes, sem uma mísera basculante para evaporar a nódoa de suas mágoas. No fundo, a imbecilidade impermeável de certos arautos da (falsa) moral e dos bons costumes tem origem em desgostos profundos, cujas raízes não foram podadas quando deveriam.
Todos nós estamos sujeitos a isso.
O meio em que vivemos é um meio de explicação, mas não justifica a parte inteira. A compreensão da realidade impõe a constante revisão de nossos conceitos e anseios, uma adaptação necessária à evolução das nossas relações com os outros e com o próprio meio. Não dá para ser pela metade, é preciso se inteirar do que nos cerca.
*
Vai passar?
Vai, mas não sem deixar marcas. Cicatrizes são importantes, carregam histórias, evocam lembranças. Aprender depende cada um.
(Na foto, a obra Guernica, de Pablo Picasso)