Por Ricardo Gonzalez de Moraes
Acendeu um cigarro e olhou o relógio sobre o criado mudo. Três e meia da manhã. Sabia que não dormiria mais naquela noite. Não depois do telefonema. Fora despertado cinquenta minutos antes pelo chamado do aparelho. Era seu velho amigo Key. Um velho amigo mesmo, dos tempos de infância e juventude vividas naquela cidadezinha perdida, naquele saudoso bairro, uma rua que era um mundo. Criaram-se juntos, e sua amizade tinha matizes de um sentimento perene, algo que nem o tempo ou a distância conseguiria extinguir. Não se viam há mais de vinte anos e ele não fazia ideia de onde andava o Key. Às vezes pensava nele, recordando as peripécias da adolescência, e o gume da saudade lhe tirava mais uma lasca do coração. Mas logo os atropelos do cotidiano lhe traziam para a crueza do presente. E então, de súbito, no ermo da noite, o Key lhe liga. Às duas e quarenta da madrugada. Para lhe dizer que estava com câncer!
Enquanto fumava tentava definir que emoção lhe assaltara. Naturalmente havia uma imensa tristeza, mas era uma tristeza estranha. Uma sensação de perda misturada a um vazio sem fim na alma. E não era tanto por seu querido amigo, grande Key. Era mais por ele mesmo. Por sentir que seu passado vinha se esboroando de forma paulatina e constante. Por perceber que suas aventuras e desencantos já tomavam assento neste patético salão da memória que ele, com ironia, chamava de “Rancho das Reminiscências”. Por começar a se achar um museu de si mesmo. Por concluir, quase pretensiosamente, apagando o cigarro contra o fundo do cinzeiro, que já era um velho!
No telefonema seu amigo trazia um tom de voz entre a agonia e a resignação. Chorou rios quando lhe contou da doença, e implorou que ele fosse lhe ver. Queria estar ao lado daquele que considerava o melhor amigo da vida, nesta hora em que a vida queria lhe fugir por entre os dedos. Disse aonde morava e o lugar distava mais de quinhentos quilômetros da sua cidade, mas foi taxativo que não se conformaria se ele não aparecesse. E precisava ser sem demora, pois já não tinha certeza de quanto tempo dispunha como habitante deste planeta. Riu quando ambos relembraram momentos hilários que passaram juntos. Mas na conversa percebia-se que apenas a desilusão tinha pouso naquela alma aflita. E as tentativas de lhe insuflar ânimo foram infrutíferas. Era, enfim, um homem derrotado!
Acendeu mais um cigarro e perambulou pelos aposentos de sua morada. Debruçou-se na janela da sala e perdeu o olhar na escuridão da noite. Lentamente se deu conta que era alguém muito importante para aquele amigo. Não conhecia possuir esse poder! No mais das vezes julgava-se um pusilânime, um fracasso de pessoa. E agora, na percepção de que o velho companheiro de danças e contradanças lhe solicitava apoio em sua hora de sofrimento, sentiu que havia, sim, um motivo para estar vivo e se fazer presente na luta pela Vida!
Iria visitar o Key, custasse o que custasse! Arrumaria algum dinheiro emprestado e tiraria uma semana de férias adiantadas. Partiria para encontrar seu amigo o mais breve possível. Era imperioso que o fizesse! Nem que fosse apenas para agradecer pela lembrança de que ele ainda era um ser vivo! Nem que fosse apenas para que os dois, entre pranto e risadas, destruíssem impiedosamente aquele passado tão presente em sua memória!
Lá fora o sol começava a surgir no horizonte...
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Ricardo Gonzalez de Moraes
Dentista, aposentado do serviço público municipal de Dois Irmãos, mas ainda ativo na área da saúde. Escreve poesias, contos e crônicas.