Por Felipe Borba*
Voltaram as discussões sobre a legalização ou descriminalização do aborto. Juridicamente, é provável que o Supremo Tribunal Federal, na linha do que decidiu em relação aos fetos anencéfalos, amplie as hipóteses já autorizadas legalmente: risco de morte da gestante e gravidez oriunda de crime sexual. O quadro normativo pode ser modificado para que, assim como em outros países, o parâmetro da “concepção” seja substituído por outro, vinculado a certo número de semanas, tomando como base, por exemplo, o início do desenvolvimento do sistema nervoso central do feto.
Ocorre que nem tudo que é legal é moralmente incontestável, e tal premissa exige reflexão. O futuro jurídico do fenômeno está nas mãos do STF. O futuro social segue nas mãos de todos.
A humanidade demonstra evolução e aperfeiçoamento no campo moral em diversos aspectos, com preceitos que norteiam em rumo contrário ao que o Supremo está por decidir.
Caminhamos no sentido do combate a condutas que tratam os seres humanos como coisa, servindo como exemplos as lutas para erradicação da escravidão, a vedação à pena de morte, a proibição de comércio de órgãos, a criminalização do tráfico de pessoas e a não admissão de procedimento de clonagem humana. Tudo isso fomentado pelo reconhecimento de que cada ser humano é único, detentor de valor e de dignidade.
Avançamos na linha de desestimular comportamentos violentos, prestigiando técnicas de resolução pacífica de conflitos, promovendo medidas de educação escoradas no diálogo, sensibilizando e humanizando procedimentos policiais, e protegendo grupos vulneráveis – idosos, mulheres, crianças, etc. – de toda forma de agressão ou de discriminação. Valores como igualdade e empatia sustentam tais movimentos.
Passamos a valorizar todas as formas de vida, tutelando ecossistemas a fim de garantir a perpetuação e diversidade das variadas espécies, ampliando a noção de maus-tratos e rechaçando formas cruéis de exploração de animais, mesmo na produção de alimentos. Ilustra bem esta tendência o fato de hoje ser crime destruir um ninho de pássaros, por exemplo.
Não se desconhecem argumentos relevantes que defendem a regulamentação do aborto, como o que invoca o problema da desigualdade social: pessoas ricas fazem procedimentos com total discrição, sigilo e segurança médica em clínicas particulares, ao tempo em que mulheres pobres executam manobras sem assistência médica qualificada e sem a tranquilidade de ter sua conduta mantida na clandestinidade. Ademais, há a questão do movimento de defesa dos direitos das mulheres, em que a luta pelo “empoderamento feminino” abrangeria a liberdade de decisão sobre a manutenção de gestações indesejadas, corolário do discurso “meu corpo, minhas regras”.
Porém, o exercício da liberdade de escolha, do poder sobre o próprio corpo e da autonomia individual demanda limites. Posicionamentos absolutos já motivaram, por exemplo, que senhores feudais decidissem sobre a vida de seus servos, que os maridos decidissem sobre a vida das esposas e que os pais decidissem sobre a vida dos filhos. Evoluímos.
Tratar o feto humano como algo descartável coloca em xeque nossa tendência ao aperfeiçoamento moral, e em tempos de individualismo exacerbado, de desagregação social e de polarização política, pode alimentar espíritos já carentes de empatia, tolerância e compreensão.
Ainda que o STF amplie as hipóteses legais de aborto, é preciso atenção e cautela, lembrando que autorização não se confunde com obrigação. O avanço jurídico não deve significar retrocesso moral. Eventual mudança normativa não precisa necessariamente ser seguida de uma redução da capacidade de as pessoas tenderem à celebração e, por consequência, à proteção da vida de qualquer novo(a) integrante, em especial a daqueles que nada sabem sobre leis ou preceitos morais, ansiando apenas e naturalmente por se desenvolverem rumo ao nascimento com vida. Depois, quem sabe, vir a se tornar até mesmo um novo membro da mais alta Corte do país.
* Felipe Borba é Mestre em Direito e Delegado de Polícia
(Foto: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo)