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Você pode não saber o que deseja, mas seu desejo saberá chegar até você. Ele vive à espreita, especulando, alimentando dúvidas e certezas, desejando-lhe a si próprio. A inteligência artificial torna-nos uma inteligência superficial e supérflua, toma o espaço da consciência que inconscientemente acreditamos ser nossa.
Aliás, cada vez mais as relações humanas são da ordem de exatas. O que exatamente eu quero dizer com isso? Não sei. Pergunte ao algoritmo.
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O cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler acaba de lançar o ótimo Tinta y Tiempo, um álbum cheio de boas ideias e reflexões gestado durante a pandemia. São dez faixas que passeiam por relacionamentos, por nossas relações com o mundo e todas as suas maravilhas conflitantes.
– Na pandemia, passamos por esse momento tão especial da vida, tão diferente dos acontecimentos normais. Tive duas reações. A primeira foi uma necessidade de relatar esse período, de falar do medo, da distância, da nostalgia da vida, da ausência de contato, da constatação do efêmero da vida. Essa foi a primeira reação que eu tive, mas depois que elaborei várias músicas sobre essa situação de pandemia, sobre o medo e a morte, pensei o seguinte: “No futuro, eu não vou querer cantar isso, mas sim o oposto”. Foi a segunda reação: a celebração da vida. Ou a celebração do amor e da arte. Então, comecei a escrever músicas que tinham esse colorido. Queria um disco cheio de cores e com orquestra. Cheio de ritmos e sonoridades. Com muita variação de músicas – disse ele, em entrevista à GZH.
Em ¡Oh, Algoritmo!, ele canta justamente a dúvida sobre o que de fato nos pertence ou fatalmente pertencerá a partir de uma vontade ou desejo pré-fabricado. (Eu sou eu mesmo?)
¿Quién quiere que yo quiera
lo que creo que quiero?
¡Dime qué debo cantar,
Oh, Algoritmo!
¡Sé que lo sabes mejor,
incluso, ¡que yo mismo!
Por ejemplo, esta canción.
¿Qué algoritmo la parió?
Me pregunto si fui yo.
¿La elegiste o te eligió?
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A propósito...
Será que meu pensamento ainda é meu ou é só mais uma maquinação do invisível algoritmo?
(Em tempo: do novo álbum ainda destaco Corazón Impar, Cinturón Blanco e Amor al Arte.)
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INSTANTE NA ESTANTE
Estar sozinho também me possibilitava expressar toda a emoção que eu sentia sem necessidade de assumir uma postura máscula, madura ou filosófica. A sós, eu chorava quando me dava vontade de chorar, e nunca essa vontade foi tão grande como quando tirei do envelope a série de imagens do cérebro dele – não porque eu fosse capaz de identificar com facilidade o tumor que lhe invadia o cérebro, mas simplesmente porque se tratava do cérebro dele, do cérebro do meu pai, daquilo que o fazia pensar da forma curta e grossa com que pensava, falar da forma enfática com que falava, raciocinar da forma emotiva com que raciocinava, decidir da forma impulsiva com que decidia. Aquele era o tecido que produzia seu conjunto de infindáveis preocupações e por mais de oito décadas sustentara sua teimosa autodisciplina, a fonte de tudo que me havia frustrado tanto como filho adolescente, a coisa que comandara nossos destinos nos tempos em que ele era todo-poderoso e ditava os propósitos da família – tudo isso agora estava sendo comprimido, deslocado e destruído devido a “uma grande massa localizada predominantemente na região dos ângulos cerebelopontinos e das cisternas prepontinas. Há uma extensão da massa na direção do sino cavernoso direito cingindo a carótida...”
Patrimônio – Philip Roth (1933-2018)