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Num arquivo perdido no computador, um texto que talvez combine com a minha falta de coisa melhor para dizer (e escrever) nesta semana...
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Às vezes tenho tempo, mas me falta inspiração, vontade. E há dias em que as palavras sobram, deslizam pelos dedos, pintam a página branca sem vacilar. Um jorro inequívoco de continuidade e consistência mesmo que a consciência não acompanhe. Aliás, quanto do que somos e do que fazemos é mera condescendência do inconsciente?
Se parar para pensar, tem vezes em que o pensamento simplesmente se deixa embalar pelo instinto, é orgânico, bruto, tosco até. Assim como são toscas e estúpidas muitas das coisas que externamos de caso pensado, pensando exatamente no espaço a ser ocupado por cada frase, por cada palavra, por cada ponta solta com o propósito de estar exatamente ali, dependurada, balançando, roçando a dúvida da compreensão do outro no vazio que se faz necessário. (Esse outro pode ser eu!)
Veja bem:
O que não está dito pode ser justamente o que eu quero dizer, mas que igualmente não compreendo. Poucos sabem ser leitores de si mesmos. O espelho engana, cada um se percebe do seu jeito e com nuances do jeito como é percebido pelos outros. O problema é que o resultado dessa mistura pode não ser você da forma como se nota e é notado.
De algum jeito é preciso começar, nem que seja tropeçando.
Um tombo na largada pode ser bom presságio, pelo menos será um a menos na caminhada que se descortina letra após letra.
Parir uma frase, um texto por menor que seja tende a ser um ato inglório, dispensável. Quem precisa das palavras do outro quando tem as suas? A rigor, quem escreve se vale de um hedonismo solitário dentro de um paradoxo niilista. Uma masturbação que encontra seu gozo em definições – mal-ajambradas, convém dizer – como ‘hedonismo solitário dentro de um paradoxo niilista’.
Mais do que significados, busca-se seus efeitos; até porque os significados podem ser variados, assim como os leitores o são. (Se não entendeu, não pergunte a quem escreveu. Passe adiante.)
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Meus passos têm o tamanho de migalhas. Não sei se me levarão a algum lugar ou a lugar nenhum. A propósito, o mais difícil é fugir do lugar comum, estabelecer algo que valha a pena ser estabelecido, que tenha sentido e que seja sentido.
Serei capaz de fazer rir ou tão somente rirão de mim? Serei capaz de fazer chorar ou o choro será de pena? Que seja, então, um choro de raiva, pois a piedade, neste caso, enraivece, não passa de um disfarce cafona para esconder o riso pelo fracasso alheio. (E eu quero fracassar com honra!)
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Não lembro quando escrevi, mas confesso que às vezes tenho dificuldade em me entender...
Se algo lhe servir, sirva-se.
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INSTANTE NA ESTANTE
“Minha ideia de estar em dois lugares ao mesmo tempo já é antiga. Devo dizer que é tão antiga quanto posso me lembrar, pois uma de minhas primeiras lembranças é estar assistindo a um programa infantil na TV e, de repente, me ver na pequena plateia do estúdio. Até hoje posso recordar a sensação do carpete marrom no quarto dos meus pais debaixo das minhas pernas, de esticar o pescoço para ver a TV, que parecia fixada bem acima de mim, e de sentir então o estômago revirar à medida que a empolgação de me ver naquele outro mundo dava lugar à certeza de que eu jamais tinha estado lá. Pode-se dizer que o senso de si ainda é poroso nas crianças pequenas. Que o sentimento oceânico persiste por algum tempo até os andaimes serem finalmente retirados dos muros que lutamos para construir à nossa volta sob o comando de um instinto inato, ainda que tocados pela tristeza que vem em saber que vamos passar o resto da vida procurando uma forma de escapar.”
Floresta escura – Nicole Krauss (1974)