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No embalo das tantas polarizações que alimentam nossos dias, estamos melhorando e piorando ao mesmo tempo em alguns aspectos de nossa humanidade.
A solidariedade é um bom exemplo e um exemplo bom da evolução a que submetemos a própria consciência, instilando benevolência na maneira de pensar, de agir, de compreender a realidade do outro, que pode ser distante ou muito próxima da nossa. Não dizem que gentileza gera gentileza? Pois então não custa tentar estender um pouco da boa vontade que a maioria carrega dentro dos seus desejos para desejar que a harmonia prevaleça.
Por outro lado, seguimos na batalha inglória dos preconceitos e extremismos, muitas vezes sem nem disfarçar nossa relutância em aceitar a diferença. Há quem confunda ignorância com autenticidade, e estes são autênticos idiotas. Não pode haver discordância que justifique a descortesia ou qualquer tipo de agressão. Agressividade, aliás, é algo deveras contagioso e de consequências imprevisíveis para todas as partes, inclusive as que nem são parte da história. Custamos a entender que temos responsabilidades além do próprio umbigo, de ordem coletiva e de colaboração no entendimento dos espaços individuais.
Como dizem, ninguém é tão bom e ninguém é tão ruim assim, mas todos nós podemos dar uma contribuição mais assertiva ao ambiente em que estamos inseridos. Por que não buscar a experimentação daquilo que edifica ao invés do que destrói?
É a velha história dos lobos que cada um alimenta dentro de si...
Por mais que você despeje as suas intenções em apenas uma das tigelas, invariavelmente restos dos seus desejos acabam sendo compartilhados entre eles; seja por piedade e benevolência de um, seja pela necessidade do outro em instigar o mínimo de resistência para que o conflito exista. Por menores que sejam, nossas fomes interiores uma hora ou outra precisam ser saciadas, arrefecidas de maneira a permitirem seu controle. Um desejo famélico é sempre um risco capaz de assumir vida própria. (Portanto, cuidado!)
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INSTANTE DA ESTANTE
“Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é um modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, cabelo arrepiado e longo. Às vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.”
Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis (1839-1908)