pitter@jornaldoisirmaos.com.br
Não importam as razões de uma guerra, deveriam importar as vidas que se perdem, as vidas que violentamente são arrancadas do seu chão, dos seus laços de sangue sem qualquer tipo de culpa. Os interesses dos gigantes, por mais mesquinhos que sejam, não levam em conta os desejos e dramas dos pequenos, tratados porta adentro dos gabinetes como danos colaterais necessários e calculados. (Que cálculo é esse?)
Sei que a geopolítica não contempla comentários rasos, que sua complexidade é profunda demais para 99% dos mortais (e dos mortos) e que o jogo propriamente dito se desenrola na parte submersa do iceberg. Sei também que não há mocinhos e que vilões são cada vez mais difíceis de decifrar. É como aqueles filmes e séries a que estamos acostumados, cujo bandido se revela no final e ainda assim conserva uma legião significativa de admiradores.
Considero-me um verdadeiro tolo por ainda expectar uma espécie de redenção coletiva, mesmo com as certezas da sua inviabilidade batendo à porta de maneira ostensiva – teimoso que sou, por ora não pretendo abrir. Como a maioria, sou obrigado a me contentar com a narrativa de que o mundo é assim, que sempre haverá dor e sofrimento, que os bons pagam pelos maus, que o inocente e ignaro sou eu (e você também!)
É bom saber que se sabe pouco ou quase nada, o que não significa sair por aí engolindo verdades prontas e de aparência apetitosa. É preciso ouvir muito, observar muito para (tentar) entender o que é, o que não é e principalmente o que parece mas não é. Muito cuidado, também, para não engasgar com opiniões mastigadas por outros e que acabam chegando à sua boca (e ao seu coração) desnutridas, envenenadas. (Aprenda você a mastigar!)
*
A propósito...
E as tantas guerras diárias, feitas de pequenas atrocidades e que levam outros nomes?
Essas também matam, porém são mais fáceis de digerir. (Ainda mais se não é com a gente).
*
INSTANTE NA ESTANTE
– Mas você é uma droga, hein, Nicolas? Você só faz trapalhada. Só trouxe decepção para nós. Repetiu um ano. Mas e essa arrogância, de onde vem? Você é um burro dos grandes. O talento foi Deus nosso Pai quem te deu, e você tá desperdiçando como um idiota! – Aproveitava a ausência da mãe para desabafar.
– Já ouvi essa lorota, pai.
– E agora trate de aprender de cor. Assim talvez você seja menos arrogante.
– Vou fazer o quê? – respondeu, e ainda assim o pai parecia quase ter desconfiado de alguma coisa. Por mais que Nicolas pudesse ser habilidoso para dissimular, camuflar e esconder, levava para casa as marcas da mudança. Um acontecimento importante é como uma corda que se enrola no corpo e a cada movimento aperta mais, esfrega e lacera, e por fim deixa na pele as marcas que todos conseguem ver. E Nicolas arrastava atrás de si, atada ao flanco, uma corda ainda amarrada à garagem dos chineses em Gianturco. À sua primeira arma.
Não tem lugar mais fácil que a encenação doméstica para fingir que não está acontecendo nada. E Nicolas fingia que não estava acontecendo nada.
Os meninos de Nápoles – Roberto Saviano (1979)