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A passagem do tempo nos traz maior consciência sobre todas as coisas. Nossa compreensão sobre comportamentos, sentimentos e, principalmente, o entendimento que se faz necessário em cada momento da vida se amplia de maneira inequívoca, tornando límpida a essência do que nos confere dor, prazer, alegria, tristeza, bem-estar e desconforto. Aprendemos que tudo se conecta mesmo na contramão das nossas expectativas.
Mais curioso ainda é perceber que o desenvolvimento pessoal aumenta na proporção do declínio físico que muitas vezes acaba vitimando a própria consciência. Por sorte – e algo como escrever certo por linhas tortas – também somos intuitivos, inocentes ou dissimulados na medida da necessidade. O tempo até pode nos tornar sábios, mas nunca garantirá certezas. É como um segredo desvendado apenas no final, pouco antes de subirem os créditos. (O problema é que muitos chegam à última cena sem crédito algum.)
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Enquanto isso, lá fora...
Calor da pachorra, um dia de quase verão. Ainda é inverno, mas a primavera não tarda, se insinua nos ipês amarelos que lentamente vão sendo depenados – que pena! Beleza e sujeira sem fim numa rua qualquer de onde se avista a vida dobrando a esquina, subindo o morro, descendo a ladeira. A ladainha da hipocrisia passeia incólume, quase despercebida, farejando nossas inquietações como cães famélicos, moribundos.
A beleza do dia suaviza mas não põe fim ao que nos fustiga. O castigo seguirá à espreita, estreitando nossos passos, conduzindo pensamentos triviais na direção do equívoco latente. (E reze para não ter dor de dente!) Mesmo que lhe supliquem clemência, lembre-se que em matéria de disfarce o lobo tem competência e que o homem é o único predador de si próprio. (A racionalidade do instinto costuma ser menos volátil.)
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Venha de onde vier, teremos que estar preparados.
Os avisos se manifestam no seu tempo, desconsiderando nossa percepção tardia. Migalhas acumulam-se pelo caminho, umas misturadas às outras, atrapalhando ainda mais nossa limitada capacidade de entendimento do que quer que seja. Para piorar, há fumaça por todos os lados, uma cortina tóxica que nos envolve e infecta. O futuro se encarregará de cobrar a fatura do nosso pedantismo, da nossa iniquidade. (Que barbaridade!)
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Enquanto isso, aqui dentro...
Se ando devagar, é porque nunca tive pressa. De um sorriso, nem lembro a cor. Não chorei demais, apenas o necessário para me arrepender. Guarde sua pena para o travesseiro e ignore as lágrimas de crocodilo. Meu aconchego não existe mais, então não há por que voltar. Sem falar que a saudade já nem cabe na mala! Cartola avisou, poucos prestaram atenção: o mundo, este moinho maldito, tritura sonhos como quem respira. (Por sorte, resta-nos o cinismo.)
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INSTANTE NA ESTANTE
Assim continuava a debater consigo no St. James’s Park, ainda tentando provar que tivera razão – como não podia deixar de ser – ao não se casar com ele. Pois no casamento é preciso um pouco de tolerância, um pouco de liberdade entres pessoas que convivem dia após dia sob o mesmo teto; e isso Richard e ela proporcionaram um ao outro. (Onde estava ele nesta manhã, por exemplo? Em alguma comissão, ela jamais lhe perguntava.) Com Peter, porém, tudo tinha de ser partilhado; tinha de ser esmiuçado. Era insuportável, e naquela cena no canteiro junto à fonte, ela fora obrigada a romper com ele, senão ambos seriam destruídos, ambos arruinados, estava certa; mesmo tendo em seguida carregado por anos, como uma flecha cravada no coração, o pesar, a angústia; e depois aquela ocasião atroz, em um concerto, quando lhe contaram que ele estava casado com uma mulher que conhecera no barco para a Índia! Nunca iria esquecer isso. Ele a considerava fria, insensível, uma santarrona. Incapaz de entender o quanto ele a amava. Ao contrário, provavelmente, dessas mulheres indianas – tolas, belas, frívolas e superficiais.
Mrs. Dalloway – Virginia Woolf (1882-1941)