Por Bronilda Hackbart
Hoje recebi uma mensagem, em espanhol, que diz que os seres humanos começam a envelhecer pelas pernas, dos pés para cima – “de los pies hacia arriba”. Por isso, há que manter as pernas em movimento a vida inteira.
Se for verdade que andar é importantíssimo para a saúde física e mental, vou longe. Sempre fui pedestre.
Quando mudei da capital para a encosta da serra, ainda exercendo meu ofício de rábula, passei a utilizar o trem urbano no trajeto Novo Hamburgo/Porto Alegre. Eram viagens tranquilas. Como eu adentrava na estação inicial, podia contar com bancos vagos e aproveitar o tempo para ler ou desfrutar da vista.
Porém, a partir da data em que meu partner se aposentou e, gentilmente, decidiu me levar a todos os lugares, deixei de ser usuária do transporte coletivo. Assim, durante uns poucos anos, fiquei mais apresentável, de sapatos limpos com solado inteiro.
Pois, agora, enquanto minha CNH ainda descansa na gaveta, voltei a precisar do metrô.
Numa tarde dessas, saindo da capital, comprei um livro para degustá-lo acomodada no trem. A visão panorâmica e uma hora de leitura sem sobressaltos me fariam bem.
Qual não foi a surpresa ao encontrar uma situação muito diferente daquela de tempos atrás. O “empreendedorismo” da nossa gente não mais permite sossego. Ler é impossível. A cada parada, entram e saem vendedores dos mais diversos produtos: balas, paçoquinhas, trufas, acessórios... Em luta pela sobrevivência, oferecem até pomadas para reumatismo. Além dos ambulantes, pedintes e artistas também burlam a segurança metroviária e assomam aos vagões. Todos em busca da colaboração dum apático público, refém daqueles apelos.
Em dado momento, postou-se diante de mim uma dupla de repentistas. Eu tinha escutado seus versos a outros passageiros e entendi que quase todas as cantigas se baseavam na aparência de cada um. Observando meu traje mono cromático, cantaram um rap mais ou menos assim:
“Atenção, por favor, senhorinha
elegante como a falecida rainha
só lhe falta o chapéu da mesma cor.”
Achei graça. Eles riram comigo e finalizaram aconselhando que eu guardasse meu relógio de pulso. Obedeci.
O alerta me fez analisar as pessoas em volta - a maioria, trabalhadores, de olhares imersos em telas de celular. A minha frente, um homem de paletó surrado firmava entre os joelhos um imenso saco plástico, repleto de latinhas vazias. Cabelos em desalinho, aparentava mais de cinquenta anos. Ao lado dele, uma moça dormia com a cabeça inclinada pra trás.
De repente, sem discurso prévio, entrou um jovem de barba escura, tocando violino. Vários se viraram para vê-lo, a menina acordou, o ar ficou respirável, o ambiente se modificou.
Reconheci as notas da música “She”* e senti que a paisagem também se transformava. Parece que saíamos dum vilarejo de ruas sombrias, subindo juntos por uma trilha aberta em meio a um campo ensolarado. Acima do cerro, se ouvia o badalar de sinos num campanário.
Aquela execução breve e linda foi um truque de mágica, um toque de suavidade nas nossas almas feridas pelas agruras do cotidiano.
Quando o artista transitou ali perto, coletando doações, não acreditei nos meus próprios olhos. O catador de latinhas pôs a mão no bolso descosido do seu paletó e lançou algumas moedas na bandeja do violinista.
Então, fiz o mesmo. Ao tirar a carteira, encontrei o relógio e o recoloquei no pulso. Depois, imitando a passageira da frente, cerrei as pálpebras para voltar ao sonho. Os trilhos são uma trilha cor de esperança e ainda há sol no topo da colina. Sebo nas canelas!
*She – música de Charles Aznavour e Herbert Kretzmer, lançada em 1974, inicialmente com o nome de “Tous les visages de l’amour”. Na voz de Elvis Costello, fez parte da trilha sonora do filme “Um lugar chamado Notting Hill”.