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Bons motivos não faltam, assim como bons sentimentos. Basta prestarmos um pouco mais atenção ao que fazemos e, principalmente, ao que pensamos. Há especialistas que definem a mente e o tempo como nossas maiores riquezas, e talvez aí esteja uma verdade imutável. O problema é que costumamos mentir para nós mesmos, sabotando nossos desejos e vontades. Desconsideramos que a força do pensamento é ação em movimento, prática em gestação, e que o que virá depois tem muito do que veio antes e do que somos agora.
Felizmente, sempre há tempo para novas tentativas, como um novo ano que se descortina pouco a pouco, em partes, na velocidade que damos a nossos dias e horas. Se não podem ser alteradas, verdades imutáveis podem ao menos ser revistas, analisadas por outros ângulos, sentidas de maneiras diferentes. O processo de transformação das coisas e das pessoas é algo imparável, que arrasta com ele quem fica parado – para a maioria, não chega a ser problema; é até um alívio. Por óbvio, cada um se encaixa da forma mais conveniente.
Escrever sobre o que parece correto não é tão difícil assim, fica até bonito nas páginas do jornal ou nas telas do computador e do celular. Porém, não se iluda, caro leitor: muitas vezes, quem escreve está tentando se convencer das próprias palavras, busca respostas que fareja na planície da teoria e prefere evitar no horizonte escarpado do dia a dia. Também não se iluda com palavras inusuais ou frases de efeito que disfarçam defeitos, muito menos se deixe levar pelo brilho duvidoso da rima fácil, armadilha preferida de tantos embusteiros.
Se existe conselho melhor ou pior, não sei dizer. Eu penso, apenas, que as experiências compartilhadas são um bom ponto de partida. Que 2022 seja um ano de mentes e corações mais arejados. (Bah, esqueci que esse ano tem eleição...)
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INSTANTE NA ESTANTE
“Mas não foi assim que vivemos, o tempo todo, lacerando-nos docemente? Não, não vivemos assim, ela bem que teria querido mas uma vez mais eu tornei a impor a falsa ordem que dissimula o caos, a fingir que me entregava a uma vida profunda da qual só tocava a água terrível com a ponta do pé. Há rios metafísicos, a Maga nada neles como essa andorinha está nadando no ar, girando alucinada ao redor do campanário, deixando-se cair para subir melhor com o impulso. Eu descrevo e defino e desejo esses rios, ela nada neles. Eu os procuro, encontro, contemplo da ponte, ela nada neles. E não sabe disso, igualzinha à andorinha. Não é como eu, que preciso saber, ela pode viver na desordem sem que nenhuma consciência de ordem a retenha. Essa desordem que é sua ordem misteriosa, essa boemia do corpo e da alma, que abre para ela de par em par as verdadeiras portas. Sua vida só é desordem para mim, afundado em preconceitos que desprezo e respeito ao mesmo tempo. Eu, condenado a ser irremediavelmente absolvido pela Maga, que me julga sem saber. Ah, me deixe entrar, algum dia me deixe ver como seus olhos veem.”
O Jogo da Amarelinha – Júlio Cortázar (1914-1984)