pitter@jornaldoisirmaos.com.br
O céu talvez não seja o limite... Ou melhor: o fundo do poço talvez seja raso para dimensionar os absurdos paridos pela triste e bisonha polarização – ou seria ‘idiotização’? – a que estamos submetidos no Brasil.
O caso ocorrido em Gramado, na última noite do Festival de Cinema, é emblemático. Se alguém não sabe, um grupo de diretores, atores e produtores atravessou o tapete vermelho, no sábado (24), protestando contra recentes declarações e medidas do presidente Jair Bolsonaro em relação ao setor audiovisual, entre elas a suspensão de edital para TVs públicas com produções pautadas pelo tema da diversidade. Com cartazes e faixas contra a censura, os artista cantavam: “Pelo cinema/pela cultura/por uma arte livre e sem censura”. Ocorre que parte do público que se aglomerava em volta, nos bares, cafés e restaurantes, reagiu com vaias, gritos de apoio ao presidente e – pasmem! – pedras de gelo. Emiliano Cunha, realizador do filme gaúcho Raia 4, deu o seguinte depoimento ao jornal Zero Hora:
- Estou tremendo aqui não pela emoção de receber um Kikito, mas porque, agora há pouco, eu estava passando com minha filha de 2 anos no colo e um cara nos jogou pedras de gelo. Quando me virei mostrando que estava com minha filha, ele voltou a jogar. Quando apontei a câmera, aí ele se escondeu, como costumam fazer os covardes que realizam esse tipo de agressão.
A organização do Festival de Cinema emitiu um comunicado sobre o episódio:
- O que não se pode admitir é a violência como prática ou resposta a ideias e opiniões diferentes. Só a tolerância e o respeito seguirão fortalecendo a história da cidade, do festival, reforçando e saudando o convívio de todos.
*
Não importa o que pensa quem estava protestando. Não importa o que pensa quem não gostou do protesto. O que importa – ou pelo menos deveria importar – é o direito ao respeito mútuo. Preocupa o pungente esgarçamento das nossas noções de civilidade. Na esteira dessa onda maluca de imposições, sejam elas físicas ou minimamente intelectuais, nossas reações vão ficando cada vez mais primitivas, assim como nossos argumentos. Há quem se valha da desculpa de que ‘o mundo está muito chato’ e ‘politicamente correto demais’ para atropelar o bom senso e as boas maneiras – um caso de duplo homicídio, sem atenuantes, na maioria das vezes premeditado e por motivo torpe.
Para alguns, tolerância é uma possibilidade intolerável – há quem se agite histericamente só de ouvir tal palavra. E não é de hoje que coisas inomináveis acontecem ou são praticadas em nome de seres e crenças que não merecem ser nominados, simplesmente porque não passam de coisas sem real importância. O fato é que vivemos por um fio e andamos perigosamente desencapados, sem filtros, sem proteção até contra nós mesmos.
*
Entendo que tudo faz parte do (eterno) círculo de cair, levantar e seguir. No entanto, bem que poderíamos ser mais complacentes com e pelo bem-comum, evitando sair de casa sempre armados – no sentido figurado, é claro. Desarmar o próprio pensamento não é tarefa para amadores, principalmente porque somos muito suscetíveis ao ‘efeito manada’. Às vezes, até quando não queremos fazer coro ao que nos contradiz, acabamos nos deixando levar pela marola que mais adiante se transforma em tsunami. Por isso, é recomendável optar por uma boia que nos permita flutuar em meio a correntes diversas.
*
A propósito...
Raiva é contagiosa. Amor, também.
Ausência de amor é fermento para raiva.
Ausência de raiva já é sinal de amor.