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– Algum conselho?
– Siga cavando.
– Sabe dizer se falta muito?
– Por ora, apenas cave.
– Pode ao menos dizer se estou no caminho certo, se haverá luz?
– Não tenha pressa, você descobrirá.
– Suas respostas são sempre tão evasivas?
– Você faz perguntas demais.
– Vejo-me sem alternativa, necessito respostas concretas, urgentes.
– Vocês, imediatistas, são incorrigíveis.
– Não posso mais perder tempo, principalmente com questões menores e improdutivas.
– Pois saiba que o êxito dos imediatistas costuma ser perfunctório.
– Pelo menos assim alcançam um vislumbre de esperança, uma vaga recompensa.
– Para quem se contenta com pouco, realmente é uma possibilidade.
– Não me parece um problema.
– Acontece que pouco nunca será suficiente.
– Fale por você.
– Não se engane: eu falo por você.
***
– E o que eu faço agora?
– Peça uma luz a Deus.
– Mas eu não acredito n’Ele.
– Tem certeza? Então por que a maiúscula?
– Força do hábito.
– Mas Ele acredita em você.
– Tenho minhas dúvidas.
– Deus, seja lá qual for o agente da sua fé, nunca ‘abre mão’ dos seus.
– A retórica é bela, porém falaciosa e paliativa.
– Experimente, homem de pouca crença e muito ceticismo, experimente.
– De que forma?
– Treinando a sua fé.
– Em Deus?
– Para começar, em você mesmo.
***
– Pena de morte: a favor ou contra?
– Não sei.
– Como não sabe?
– Preciso analisar todas as circunstâncias antes de opinar a respeito.
– Então quer dizer que é a favor de bandido.
– Não foi o que eu disse. Preciso apenas de maior embasamento antes de emitir opinião.
– Mas a questão é simples: a favor ou contra.
– Questões simples às vezes ocultam um grau de complexidade inimaginável.
– Isso é desculpa de quem vive no muro ou defende bandido.
– Desisto. Você é como a maioria: não procura opinião, apenas concordância.
– Não entendi.
– Esqueça. Na verdade, não tenho opinião sobre a pena de morte, apenas sobre a morte.
– E o que acha da morte?
– Uma pena.
***
– Improviso, instinto, sorte, tudo pode conspirar a favor. No entanto, apenas o treinamento exaustivo é capaz de oportunizar as melhores inspirações com base no improviso, instinto ou na sorte. O acaso nem sempre – ou quase nunca – é por acaso.
– É só o que tens a dizer?
– E precisa mais?
– Mas o que dizes é praticamente nada.
– E precisa mais?
*
INSTANTE NA ESTANTE
De tempos em tempos posso ver-lhes os rostos, contra a escuridão, tremeluzindo como imagens de santos, em velhas catedrais estrangeiras, iluminados pela luz intermitente das velas; velas que você acenderia a seus pés para fazer uma prece, ajoelhada, com a fronte apoiada no anteparo de madeira, na esperança de uma resposta. Posso conjurá-los, mas são miragens apenas, não duram. Posso ser culpada por querer um corpo de verdade para pôr meus braços ao redor? Sem isso também estou desprovida de corpo. Posso ouvir a batida de meu próprio coração contra o estrado de molas da cama, posso acariciar a mim mesma, debaixo dos lençóis brancos e secos, na escuridão, mas também estou seca e branca, dura, granular; é como passar a mão sobre um prato cheio de arroz seco; é como neve. Há algo de morto nisso, algo que foi abandonado. Sou como um quarto onde outrora as coisas aconteciam e agora nada a acontece, exceto o pólen das ervas que crescem do lado de fora da janela que entra trazido pelo vento, como poeira espalhada no chão.
O conto da aia – Margaret Atwood (1939)